
Dorival Caymmi “não gostava das [re]interpretações das músicas dele de um modo geral”, disse Dori Caymmi, segundo filho do músico baiano, em entrevista para o documentário “Um Homem de Afetos”. Mas isso não impediu que ele fosse extensamente regravado — com respeito e honrarias — por cantores Brasil afora.
Autor de pelo menos 156 canções, segundo os registros do Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), o Caymmi pai teve suas letras cantadas por grandes nomes da música brasileira. Muitos deles certamente tiveram sua licença, como é o caso de Chico Buarque e Gal Costa, que chegou a dividir vocais com o músico citado por ela como inspiração.
Tais regravações podem ser vistas como uma preservação de legado, não à toa os principais intérpretes são justamente Nana, Dori e Danilo Caymmi, descendentes diretos do talento do pai. A lista segue com Maria Bethânia, João Gilberto, Gal Costa e Gilberto Gil, conforme levantamento do Ecad.
Intérpretes que mais regravaram Dorival Caymmi
Posição | Intérpretes | Nº de gravações |
1 | Nana Caymmi | 130 |
2 | Danilo Caymmi | 107 |
3 | Dori Caymmi | 99 |
4 | Maria Bethânia | 40 |
5 | João Gilberto | 33 |
5 | Gal Costa | 33 |
6 | Gilberto Gil | 30 |
8 | Olívia Hime | 27 |
8 | Claudio Nucci | 25 |
9 | Cyva Leite | 23 |
9 | Cynara | 23 |
10 | Sonya | 21 |
10 | Casuarina | 21 |
10 | João Fernando | 21 |
10 | Gabriel Azevedo | 21 |
10 | Rafael Freire | 21 |
10 | Daniel Montes | 21 |
Fonte: Ecad
O escritório também apurou quais as obras mais cantadas por outros intérpretes.
Em primeiro lugar, aparece a paixão zangada “Marina”, com o registro de ao menos 125 versões. Confira o TOP 10:
Composições mais regravadas de Dorival Caymmi
Posição | Título da música | Nº de regravações |
1 | Marina | 125 |
2 | Samba da Minha Terra | 99 |
3 | Rosa Morena | 91 |
4 | Maracangalha | 76 |
5 | Saudade da Bahia | 72 |
6 | Só Louco | 61 |
7 | Doralice | 52 |
8 | Dora | 48 |
9 | Nem Eu | 46 |
10 | Vatapá | 45 |
Fonte: Ecad
Referência para gerações
Os números não surpreendem — antes de músicos como Caetano Veloso alcançarem o estrelato, as paradas de sucesso eram compostas por Dorival Caymmi. Ao lado de João Gilberto, ele foi um dos ídolos da geração marcada por movimentos como a Tropicália.
“Pra mim, ele é o maior, maior figura da música popular brasileira de todos os tempos”, disse Caetano no documentário “Um Homem de Afetos”, que chegou aos cinemas na última quinta-feira (25).
Em entrevista para o programa “Conversa com Bial”, exibida em agosto de 2018, Gilberto Gil disse que nem se atrevia a tentar tocar com o mestre, apelidado por ele de “Buda Nagô”. Gil foi casado com Nana, portanto genro do ídolo com quem pôde conviver intimamente no final da década de 1960.

Esse respeito também é percebido na obra de artistas que vieram depois. Para Alice Caymmi, também cantora e neta do baiano, ele era um homem “fora do seu tempo”, o que inspira sua atuação na cena artística.
Em 2014, época do centenário de Caymmi, Daniela Mercury fez um show em homenagem ao músico. Procurada pelo portal, ela o classificou como “pedra fundamental da música”.
“Não dá para entender o que é ser baiano sem a influência de Dorival Caymmi. Ele influenciou todos os sambistas, todos os artistas que vieram a fazer a bossa nova, a começar pelo próprio João Gilberto”
Nas palavras da cantora de axé music, o cancioneiro foi para a música o que Jorge Amado representou para a literatura. Os dois, inclusive, eram amigos e parceiros — Caymmi compôs “Modinha para Gabriela” para a adaptação televisiva de “Gabriela, Cravo e Canela” (1958), romance do autor.
Outra que já homenageou o músico foi Emanuelle Araújo, atriz e vocalista da banda Moinho. Em março deste ano, ao iniciar as comemorações dos 20 anos do grupo, ela, Lan Lanh (percussão) e Toni Costa (guitarra) reverenciaram o artista com a inclusão de “Sábado em Copacabana” no repertório do show.
Caymmi foi a inspiração inicial para o projeto, já que o próprio nome da banda vem de uma das obras dele, a faixa “Moinho da Bahia”
Emanuelle conta que foi apresentada ao repertório do artista ainda criança pela relação que seu pai tinha com o trabalho do músico. “Logo em seguida, eu entendi quem era o seu Dorival, como eu entendi o quanto ele representa pra gente na história da nossa música brasileira, na nossa história baiana, inclusive de levar a nossa música pra fora”, comenta, ao citar o movimento repetido por diversos artistas que deixavam sua terra em busca da prosperidade prometida no eixo Rio-São Paulo.
“Mas para além da dimensão mental, intelectual, que eu fui entendendo desse grande artista, existiu e sempre existirá uma coisa muito afetiva mesmo. Ouvir Caymmi é sentir cheiro da minha terra, é sentir cheiro da minha casa, é sentir cheiro da comida de minha avó, é sentir saudade do violão do meu pai”.
Canto sobre a Bahia
O samba-canção de Caymmi falava de amor, dos costumes e de sua terra. Estudiosos de música e cultura creditam ele como um dos maiores, senão o maior representante do que se convencionou chamar de baianidade.
“Ele foi o primeiro artista baiano a colocar a Bahia em uma posição de destaque”, ressalta Marcelo Argôlo, jornalista especializado em música, em entrevista ao g1.
O primeiro sucesso do cancioneiro é exemplo disso. Chamado para substituir o já aclamado Ary Barroso como compositor de canções que seriam interpretadas por Carmen Miranda no filme “Banana da Terra” (1939), o novato entregou “O Que é Que a Bahiana Tem?”.
Segundo Dori e Caetano Veloso, mais que letrista, o músico atuou como um designer para a portuguesa criada no Brasil. Ele ensinou trejeitos comuns a mulheres que viviam no estado nordestino à época para que a atriz e cantora soubesse como se apresentar.
A partir daí, Caymmi se tornou referência de samba-canção na era do rádio e outras de suas obras foram dedicadas a retratar pessoas, lugares e toda a cultura popular permeada por festas e pela religiosidade tão características do território baiano, lembra Argôlo.
Ainda que tenha se mudado para o Rio de Janeiro, onde consagrou sua carreira artística, o músico manteve o olhar para o lugar onde nasceu e cresceu. É como cantou: “Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia”