Uma pasta contendo informações altamente confidenciais relacionadas à suposta interferência eleitoral russa nos Estados Unidos em 2016 desapareceu no final da Presidência de Donald Trump.
O fato alarmou autoridades de inteligência, pois alguns dos segredos de Segurança Nacional mais bem guardados dos EUA e de aliados poderiam ser expostos, disseram fontes familiarizadas com o assunto
O desaparecimento da pasta, que não foi relatado anteriormente, foi tão preocupante que os funcionários dos serviços de inteligência informaram os líderes do Comitê de Inteligência do Senado no ano passado sobre os materiais desaparecidos e os esforços do governo para recuperá-los, ressaltaram as fontes.
Nos mais de dois anos desde que Trump deixou o cargo, os documentos desaparecidos não parecem ter sido encontrados.
A pasta continha informações brutas que os Estados Unidos e seus aliados da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) recolheram sobre russos e agentes russos, incluindo fontes e métodos, que basearam a avalição do governo dos EUA de que o presidente russo, Vladimir Putin, procurou ajudar Trump a vencer as eleições de 2016
As informações eram tão sensíveis que legisladores e assessores do Congresso com autorizações de segurança ultrassecretas só puderam rever o material na sede da CIA em Langley, na Virgínia, onde o trabalho de análise foi mantido em um cofre trancado.
A pasta foi vista pela última vez na Casa Branca, durante os últimos dias de Trump no cargo. O ex-presidente ordenou que os documentos fossem levados para lá para que ele pudesse desclassificar — ou seja, tirar o rótulo de documento secreto — uma série de informações relacionadas à investigação do FBI sobre a Rússia.
Sob os cuidados do então chefe de gabinete da Casa Branca, Mark Meadows, a pasta foi vasculhada por assessores republicanos que trabalhavam para editar as informações mais confidenciais para que pudessem ser divulgadas publicamente.
As informações sobre a Rússia eram apenas uma pequena parte da coleção de documentos na pasta, descrita como tendo 25 centímetros de espessura e contendo folhas e mais folhas de conteúdo sobre a investigação do “Furacão Crossfire” do FBI sobre a campanha de Trump em 2016 e a Rússia.
Mas a informação bruta sobre a Rússia estava entre os materiais confidenciais mais sensíveis, e funcionários do alto escalão da administração Trump tentaram repetidamente impedir o ex-presidente de divulgar os documentos.
Um dia antes de deixar o cargo, Trump emitiu uma ordem tornando pública a maior parte do conteúdo da pasta, desencadeando uma enxurrada de ações nas últimas 48 horas de sua Presidência.
Várias cópias do fichário editado foram criadas dentro da Casa Branca, com planos de distribuí-las por Washington aos republicanos no Congresso e aos jornalistas de direita.
Em vez disso, as cópias inicialmente enviadas foram recuperadas freneticamente sob orientação dos advogados da Casa Branca, exigindo edições adicionais.
Poucos minutos antes da posse de Joe Biden, Meadows correu ao Departamento de Justiça para entregar em mãos uma cópia editada para uma última revisão.
Anos mais tarde, o Departamento de Justiça ainda não divulgou todos os documentos, apesar da ordem de desclassificação de Trump. Cópias adicionais com níveis variados de edição acabaram no Arquivo Nacional.
Mas uma versão não editada do fichário contendo informações secretas brutas desapareceu em meio às caóticas horas finais da Casa Branca de Trump. As circunstâncias que rodearam o seu desaparecimento permanecem envoltas em mistério.
As autoridades americanas recusaram-se ra discutir quaisquer esforços do governo para localizar a pasta ou confirmar o desaparecimento de informações.
A pasta não estava entre os itens confidenciais encontrados na busca do ano passado no resort de Trump em Mar-a-Lago, de acordo com uma autoridade familiarizada com o assunto, que pontuou que o FBI não estava procurando especificamente informações relacionadas à Rússia quando obteve um mandado de busca para a residência do ex-presidente.
Também não há referência ao fichário ou ao desaparecimento das informações na acusação contra Trump pelo mau uso de documentos confidenciais em Mar-a-Lago.
Teoria sobre paradeiro do fichário
Entretanto, surgiu uma teoria sobre o paradeiro do fichário.
Cassidy Hutchinson, uma das principais assessoras de Meadows, testemunhou perante o Congresso e escreveu em suas memórias que acredita que Meadows levou para casa uma versão não editada do fichário. Ela disse que o documento foi guardado no cofre de Meadows e que o viu sair da Casa Branca com ele.
“Tenho quase certeza de que isso foi para casa com o Sr. Meadows”, afirmou Hutchinson ao comitê de 6 de janeiro em depoimento a portas fechadas, de acordo com transcrições divulgadas no ano passado.
Um advogado de Mark Meadows, no entanto, nega veementemente que ele tenha manipulado indevidamente qualquer informação confidencial na Casa Branca, ressaltando que qualquer sugestão de que ele foi responsável pelo desaparecimento de informações confidenciais era “totalmente errada”.
“O senhor Meadows estava profundamente ciente e cumpriu os requisitos para o manuseio adequado de material classificado [secreto], qualquer material que ele manipulou ou estava em sua posse foi tratado adequadamente e qualquer sugestão de que ele é responsável por qualquer fichário faltante ou outra informação classificada é totalmente errada”, destacou o advogado George Terwilliger em nota
“Qualquer pessoa e entidade que sugira que ele é responsável por qualquer coisa faltante não possui fatos e deve ter muito cuidado antes de fazer falsas alegações”, concluiu.
Nos anos desde que Donal Trump deixou o cargo, seus aliados têm perseguido o fichário editado para que possam divulgá-lo publicamente, processando o Departamento de Justiça e os Arquivos Nacionais no início deste ano.
Em paralelo, os advogados de Trump procuram agora acesso à informação confidencial da avaliação eleitoral de 2016, enquanto se preparam para a sua defesa contra acusações decorrentes dos esforços para anular as eleições de 2020.
Esse relato da jornada do fichário até à Casa Branca, de como o seu rasto esfriou quando Trump deixou o cargo e das questões persistentes que ele levanta baseia-se em entrevistas com mais de uma dúzia de fontes familiarizadas com o assunto, todas as quais pediram anonimato para discutir a questão delicada.
A CIA (agência de Inteligência dos EUA), o FBI (agência nacional de investigações dos EUA), os Arquivos Nacionais e o Gabinete do Diretor de Inteligência Nacional recusaram-se a comentar o caso.
Uma porta-voz do Comitê de Inteligência do Senado e um advogado de Hutchinson também não quiseram comentar. Um porta-voz de Trump não respondeu a um pedido de nota.
“Um cofre dentro de um cofre” na CIA
A pasta desaparecida está no centro de uma das lutas mais controversas travadas nos bastidores pelo então presidente Trump.
Apesar da forte oposição dos seus próprios oficiais de Segurança Nacional, o empresário passou anos tentando desclassificar o material, que, segundo Trump, provaria suas alegações de que a investigação do FBI sobre a interferência da Rússia na sua campanha era uma farsa.
As origens da pasta remontam a 2018, quando os republicanos do Comitê de Inteligência da Câmara, liderados pelo presidente Devin Nunes, compilaram um relatório confidencial alegando que a administração Obama distorceu informações na sua avaliação de que Putin tinha trabalhado para ajudar Trump nas eleições de 2016.
O relatório do Partido Republicano, que criticou a “arte comercial” da comunidade de inteligência, examinou a informação altamente confidencial de 2016 que baseou a avaliação que Putin e a Rússia procuraram ajudar a campanha de Trump.
Os republicanos da Câmara fecharam um acordo com a CIA no qual a comissão trouxe um cofre para os seus documentos, que foi depois colocado dentro de um cofre da CIA, uma configuração que levou alguns funcionários a caracterizá-lo como um “turducken”, ou um “cofre dentro de um cofre”.
Fontes dos partidos Republicano e Democrata discordaram quanto ao conteúdo do relatório.
Integrantes do Partido Republicano familiarizados com os detalhes disseram que o relatório argumentou que a avaliação da comunidade de inteligência foi distorcida por funcionários do alto escalão da administração Obama para excluir informações que sugeriam que a Rússia na verdade queria que Hillary Clinton vencesse em 2016, ao mesmo tempo que enfatizava excessivamente a importância da inteligência indicando que a Rússia preferia Trump.
Fontes do Partido Democrata, porém, ressaltam que as alegações republicanas foram exageradas. Uma fonte disse que as informações mencionadas no relatório provaram, na verdade, o oposto do que os republicanos afirmavam: que a Rússia estava interferindo nas eleições dos EUA e tentando manipular pessoalmente Trump e ajudá-lo a vencer.
A versão democrata foi corroborada em 2020 pela Comissão de Inteligência do Senado, liderada pelos republicanos, que concluiu que a avaliação de 2016 era um “produto de inteligência sólido” e que os analistas não estavam sob pressão política para chegar a conclusões específicas, minando as alegações de Devin Nunes.
Autoridades de segurança se negaram a tornar documento público
O relatório do líder republicano de 2018 tornou-se um dos muitos documentos ligados à investigação sobre a Rússia que Trump e os seus aliados queriam tornar público.
Mas os líderes da Segurança Nacional do governo Trump, especialmente a diretora da CIA à época, Gina Haspel, resistiram veementemente à divulgação do relatório e de outros documentos, temendo a exposição de fontes e métodos.
O desacordo acompanhou Haspel durante todo o seu mandato na administração Trump.
O empresário deixou claro, em particular, que queria colocar as mãos no relatório do Partido Republicano. Durante uma conversa em outubro de 2020, Trump sugeriu que deveria visitar pessoalmente a sede da CIA e exigir acesso, de acordo com uma fonte familiarizada com a conversa.
Na preparação para as eleições de 2020, dois líderes de inteligência de Trump, o Diretor Interino de Inteligência Nacional, Richard Grenell, e seu sucessor, John Ratcliffe, desclassificaram alguns documentos e informações relacionadas à Rússia e ao FBI.
Mas o relatório do Partido Republicano da Câmara permaneceu confidencial.
Trump considerou demitir Haspel após a eleição, enquanto pressionava para divulgar mais informações sobre a investigação na Rússia. Ao menos um conselheiro do ex-presidente sugeriu substituir Haspel por Kash Patel, assessor de Nunes em 2018, quando o relatório do Partido Republicano foi redigido.
Em 2019, Patel foi trabalhar para Trump no Conselho de Segurança Nacional antes de se tornar chefe de gabinete do secretário de Defesa interino nos últimos meses de Trump.
Em dezembro de 2020, o então procurador-geral William Barr trabalhou com Ratcliffe para dissuadir Trump de desclassificar ao menos um subconjunto da inteligência relacionada com a Rússia, argumentando que isso prejudicaria a segurança nacional, pontuaram fontes à CNN.
Outros ex e atuais funcionários dizem que Barr e assessores do seu gabinete também pressionaram o FBI e as agências de inteligência para satisfazerem as exigências de Trump e tornarem públicas mais informações, pressão que continuou depois de Barr ter deixado o cargo.
A certa altura após a eleição, Haspel, o diretor do FBI, Christopher Wray, e o diretor da NSA, general Paul Nakasone, viajaram ao Capitólio em curto prazo para falar com os líderes da inteligência do Congresso sobre suas profundas preocupações com a possibilidade de Trump divulgar o material, segundo fontes.
Segredos chegam à Casa Branca
Em 19 de dezembro, quatro dias depois de Barr ter anunciado sua demissão, Nunes reuniu-se com Meadows na Casa Branca para discutir como desclassificar documentos relacionados com a investigação do FBI sobre a campanha de Trump e a Rússia, testemunhou Hutchinson ao Congresso.
Onze dias depois, fontes dizem que uma cópia do relatório do Partido Republicano foi levada à Casa Branca como parte de uma enorme pasta de documentos sobre a Rússia e a investigação do FBI.
Hutchinson pontuou ao comitê de 6 de janeiro que assinou o recebimento dos documentos quando eles chegaram à Casa Branca.
Nos dias seguintes, Meadows discutiu os documentos com o então conselheiro da Casa Branca, Pat Cipollone, e também se reuniu com funcionários republicanos do Comitê de Inteligência da Câmara para revisá-los, ainda segundo Hutchinson.
No seu livro sobre o seu tempo como chefe de gabinete de Trump, Meadows escreveu que o empresário exigiu que os documentos fossem levados à Casa Branca.
“Eu pessoalmente examinei cada página, para ter certeza de que a desclassificação [dos documentos] pelo presidente não revelaria inadvertidamente fontes e métodos”, escreveu.
Juntamente com o relatório do Partido Republicano que examinava as informações sobre a Rússia, o conteúdo da pasta incluía os problemáticos mandados de vigilância de inteligência estrangeira do FBI sobre um conselheiro da campanha de Trump desde 2017.
Também havia notas de entrevista com Christopher Steele, autor do infame dossiê sobre Trump e a Rússia, relatórios do FBI provenientes de uma fonte confidencial relacionados à investigação e mensagens de texto e e-mails internos do FBI e do Departamento de Justiça, entre outros documentos.
A versão da pasta que Hutchinson assinou foi mantida em segurança no escritório de Meadows, ela testemunhou, exceto quando estava sendo trabalhada por funcionários do Congresso.
“Ele queria manter isso sob controle. Ele não queria que isso fosse amplamente conhecido”, Reiterou Hutchinson ao comitê de 6 de janeiro. “Eu simplesmente conheço o Sr. Meadows. Ele não teria copiado aquela [pasta], a menos que fizesse isso sozinho, mas não acho que ele saiba usar uma copiadora”, complementou.
Em seu livro, Hutchinson relembrou um momento em que Meadows pediu que ela recuperasse a pasta e reclamou quando ela lhe disse que estava no cofre. “Eu disse para você não perder isso de vista. Deveria estar na gaveta da sua mesa”, Meadows teria dito a ela.
“A gaveta da minha mesa, Mark, não é o lugar onde os documentos confidenciais pertencem. Estava no cofre. Você não tem nada com que se preocupar”, teria respondido Hutchinson.
Depois que os assessores do comitê concluíram as edições propostas, cópias adicionais foram feitas na Casa Branca para que o fichário pudesse ser desclassificado e liberado.
Quase divulgação dos materiais
Enquanto isso, no FBI, os funcionários do alto escalão lutaram para proteger os detalhes mais sensíveis e limitar os danos do que consideravam serem edições insuficientes.
“Qualquer desclassificação adicional revelaria técnicas sensíveis de coleta de inteligência, prejudicaria as relações com parceiros estrangeiros, colocaria em risco o patrimônio da Comunidade de Inteligência dos Estados Unidos, potencialmente violaria ordens judiciais que limitam a disseminação de informações da FISA (e) colocaria em risco fontes humanas confidenciais”, um funcionário do FBI escreveu à Casa Branca, de acordo com uma fonte que leu partes da carta.
Em 19 de janeiro de 2021, Trump emitiu uma ordem de desclassificação para uma “fichário de materiais relacionados à investigação do Furacão Crossfire do FBI”.
A Casa Branca planejou distribuir os documentos desclassificados por Washington, inclusive ao jornalista conservador aliado de Trump John Solomon.
Mas a ordem não levou à sua liberação, e no início desse ano Solomon processou o Departamento de Justiça e os Arquivos Nacionais pelo acesso aos documentos.