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A discussão da proposta começou no início de setembro, mas foi interrompida por um pedido de vista (mais tempo para análise) após a leitura do parecer do relator, deputado Pastor Eurico (PL-PE).
Em seu relatório, Eurico analisou nove projetos sobre o tema que tramitam em conjunto na Câmara. O principal, apresentado pelo então deputado Clodovil Hernandes (PTC-SP), estabelecia a possibilidade de celebrar casamentos homoafetivos.
O parlamentar, no entanto, rejeitou o texto e outros sete. Somente a proposta que veta o reconhecimento desse tipo de união recebeu o aval do relator.
O projeto adiciona um parágrafo ao artigo do Código Civil que elenca impedimentos para a celebração de casamentos e uniões estáveis. Segundo o projeto, relações entre pessoas do mesmo sexo não poderão ser equiparadas:
- ao casamento
- à entidade familiar
O texto em análise na comissão foi apresentado em 2009 – três anos antes de o Supremo Tribunal Federal (STF) permitir uniões homoafetivas – e desengavetado neste ano.
A retomada do projeto é patrocinada por parlamentares de oposição ao governo e ligados à bancada evangélica na Câmara. O colegiado no qual a discussão ocorre é visto como um dos mais dominados por deputados conservadores.
Mesmo diante de campanhas em redes sociais contrárias ao texto e das críticas de pares na Casa, o presidente da comissão, deputado Fernando Rodolfo (PL-PE), diz esperar que a votação seja encerrada nesta terça.
Rodolfo nega, ainda, que haja um esforço direcionado contra a comunidade LGBTQIA+.
“O projeto não foi desarquivado como estão dizendo. Ele estava engavetado, o que é diferente. Todos os projetos que estavam engavetados na comissão estão sendo pautados. Começamos pelos mais antigos. Tínhamos projetos de 2003, esse de Clodovil foi de 2007. Não foi algo direcionado. Ele estava lá e, como todos os outros, foi pautado”, afirma.
Os casamentos homoafetivos não estão regulamentados em lei. A base jurídica para a oficialização dessas relações é uma decisão do STF de 2011.
À época, por unanimidade, os ministros decidiram que um artigo do Código Civil deveria ser interpretado para garantir o reconhecimento de uniões entre pessoas do mesmo sexo. A decisão também considerou essas relações como entidades familiares.
Dois anos depois, em 2013, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou resolução para obrigar a celebração de casamentos homoafetivos em cartórios.
Desde a resolução do CNJ, o número de casamentos homoafetivos cresceu quase quatro vezes no Brasil. Os registros saltaram de 3.700 em 2013 para quase 13 mil até 2022
No parecer, o Pastor Eurico justifica o acolhimento da proposta com base em teses religiosas.
Segundo ele, o casamento entre pessoas do mesmo sexo é “contrário à verdade do ser humano”.
“O que se pressupõe aqui é que a palavra “casamento” representa uma realidade objetiva e atemporal, que tem como ponto de partida e finalidade a procriação, o que exclui a união entre pessoas do mesmo sexo”, argumenta.
“Toda lei feita pelos homens tem razão de lei porquanto deriva da lei natural”, acrescenta.
Afronta à Constituição
Relator da ação que assegurou o direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo, o ministro aposentado do Supremo Ayres Britto diz que a proposta em discussão na Câmara “está em rota de colisão” com o que decidiu a Corte.
“O que o STF decidiu, por unanimidade, foi à luz da Constituição. O entendimento é claro e assegura aos casais homossexuais os mesmos direitos de uniões formadas por pessoas de sexos diferentes”, afirma.
De acordo com o ministro, o projeto não tem “chance de prosperar”. “Juridicamente, é uma afronta aos princípios constitucionais”, explica.
“Hipoteticamente, em uma chance muito remota, essa lei seria derrubada pelo Supremo. O STF reafirmaria o entendimento adotado em 2011.”
Professor titular de Direito Constitucional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e advogado, Daniel Sarmento avalia que o texto do projeto vai contra a Constituição e os princípios estabelecidos.
Para ele, em uma eventual entrada em vigor da lei, o Supremo manifestaria novamente, após ser provocado, a inconstitucionalidade da proibição a casamentos homoafetivos.
“A decisão do STF [que liberou as uniões] foi tomada para preservar direitos constitucionais. O texto do projeto, retrógrado, vai contra cláusula pétrea. Não há como prosperar”, diz.
O ministro aposentado do STF Celso de Mello, que participou do julgamento que permitiu os casamentos homoafetivos, afirma que iniciativas como a discutida na Câmara representam um “retrocesso social”.
“Qualquer ensaio objetivando impedir, por via legislativa, o reconhecimento do casamento civil homoafetivo constituirá, segundo penso, um gesto de indigno retrocesso social, impregnado de indisfarçável e censurável preconceito, vulnerador de postulados constitucionais básicos, todos eles protegidos por cláusula pétrea”, afirma.
Na avaliação do ministro, é necessária intervenção do Estado para “assegurar aos homossexuais a possibilidade, que deriva da própria Constituição, de verem admitidos, oficialmente, os casamentos civis homoafetivos, com todas as consequências jurídicas daí resultantes”.
“Essa visão do tema tem a virtude de superar, em pleno terceiro milênio, incompreensíveis resistências sociais e institucionais fundadas em inadmissíveis e reacionárias fórmulas preconceituosas. Torna-se necessário, mais do que nunca, atribuir verdadeiro estatuto de cidadania aos casamentos civis homoafetivos!!!”
Mobilização contra a proposta
Embora reconheçam dificuldade, parlamentares da base governista e progressistas que integram a comissão têm se mobilizado para derrotar o parecer de Pastor Eurico
Uma das tentativas é da deputada Laura Carneiro (PSD-RJ). Ela já apresentou um voto em separado, que propõe um novo parecer ao projeto de Clodovil para reconhecer como entidade familiar a “união estável entre duas pessoas” – sem indicar gêneros.
A parlamentar avalia, porém, que não há certeza de que o grupo sairá vencedor.
“Estamos trabalhando para isso [derrotar o parecer], mas é difícil nessa comissão”, diz
Se os membros do colegiado derrotarem o parecer de Eurico, um novo relator deverá ser designado para a apresentação de um novo texto e uma nova votação.
Qualquer que seja o resultado, no entanto, o projeto ainda seguirá em discussão na Câmara. O texto somente irá ao Senado se for aprovado em votação na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara. Isso se não houver recurso ao plenário principal da Casa.