País tem chance de resolver incoerência que o acompanha há mais de uma década: proteger muito, mas reconhecer pouco

O Brasil chega à COP30, em Belém, com uma posição estratégica única — e um paradoxo climático que permanece sem solução. O país possui uma das legislações florestais mais rigorosas do mundo, o Código Florestal, responsável pela preservação obrigatória de mais de 120 milhões de hectares de vegetação nativa em propriedades privadas.
No entanto, essa mesma rigidez impede que a maior parte desse esforço seja reconhecida internacionalmente como mitigação de emissões. Pelas regras do artigo 6.4 do Acordo de Paris, hoje em fase final de operacionalização, apenas atividades “adicionais”, que vão além do que a lei exige, podem gerar créditos de carbono. Isso exclui, em teoria, a conservação compulsória de APPs e Reservas Legais, por mais relevante que seja para o clima.
A própria ONU reconheceu essa distorção ao aprovar, em fevereiro de 2025, as regras de adicionalidade para o novo mecanismo (documento A6.4-SBM015-A11). Entretanto, o texto introduz uma brecha regulatória decisiva para países com legislações ambientais robustas, como o Brasil: o parágrafo 6.1(25), que permite considerar como adicionais as reduções resultantes de leis nacionais formalmente integradas ao mecanismo do artigo 6.4.
Ou seja, se o Brasil estruturar essa integração, o cumprimento do Código Florestal poderá deixar de ser um obstáculo e passar a ser reconhecido como ativo climático soberano. Seria uma inversão histórica da lógica em que países que legislaram cedo acabam penalizados nos mercados internacionais, principalmente nos mercados voluntários de carbono com certificadoras como a Verra.
Esse debate ganha ainda mais relevância porque o artigo 6.4 é decisivo para a própria NDC brasileira. Embora o artigo 6.2 não exija adicionalidade no sentido metodológico do 6.4, países podem adotar padrões do artigo 6.4 voluntariamente em acordos bilaterais, elevando a integridade dos ITMOs. Essa estratégia reforça a credibilidade internacional do Brasil e facilita o uso interoperável com o SBCE. Ou seja, quanto mais robusto e transparente for o enquadramento brasileiro no artigo 6.4, maior será a capacidade do país de emitir, autorizar e comercializar ITMOs com integridade.
Isso tem reflexos diretos no desenho do Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões (SBCE). As reduções reconhecidas no artigo 6.4 poderão alimentar tanto o mercado regulado doméstico quanto as transações internacionais, criando um nexo contábil entre a NDC, o SBCE e o mercado global de carbono. Em suma, sem resolver a adicionalidade no artigo 6.4, a NDC brasileira permanece subaproveitada e o SBCE não atinge seu potencial de integração internacional.
O desafio é que essa oportunidade regulatória esbarra em um problema doméstico ainda não resolvido. A revisão do Plano Nacional sobre Mudança do Clima (Plano Clima 2025) encerrou sua consulta pública recentemente, mas o governo ainda não divulgou o texto final nem esclareceu como pretende apresentá-lo na COP 30.
Enquanto isso, uma inconsistência central permanece: o Plano Clima propõe contabilizar, de forma agregada, as emissões do setor agropecuário, incluindo nelas o desmatamento ilegal. Ao misturar atividades lícitas e ilícitas, o país perde a capacidade de demonstrar que suas reduções decorrem de cumprimento de lei — algo que o artigo 6.4 exige de forma explícita para validar a chamada “adicionalidade”.
As consequências práticas, no curto prazo, são significativas. Se essa fragilidade metodológica não for corrigida no texto final ou em sua apresentação internacional, o Brasil poderá enfrentar resistência e ter dificuldades para registrar metodologias baseadas no Código Florestal (i.e., APP e RLs).
Isso reduziria a elegibilidade de mitigação brasileira no artigo 6.4, limitaria a capacidade de geração de ITMOs no artigo 6.2 e afetaria a própria liquidez futura do SBCE para projetos oriundos de APPs e Reservas Legais. Em paralelo, países como Indonésia, Chile e Gana, que já ajustaram suas contabilidades nacionais para refletir com precisão a diferença entre ilegalidade e regulação, poderão ocupar o espaço de liderança que tradicionalmente se espera do Brasil.
A solução existe e é tecnicamente simples. A primeira medida é ajustar a contabilidade nacional para separar o desmatamento ilegal das emissões do setor agropecuário regulado, classificando-o como emissão de governança estatal, e não como responsabilidade produtiva.
Esse realinhamento permite reconstituir a rastreabilidade necessária para demonstrar que as reduções em APPs e Reservas Legais derivam de cumprimento efetivo do Código Florestal. A segunda medida é normativa: integrar formalmente o Código Florestal e o SBCE à NDC e criando o vínculo jurídico que aciona a exceção do § 6.1(25) e viabiliza a conversão de obrigações legais em resultados de mitigação reconhecidos.
Se o Brasil avançar nessa direção — e a COP30 é o palco ideal para anunciar tal alinhamento —, o país poderá converter sua legislação florestal em resultados de mitigação plenamente reconhecidos e utilizáveis nos mercados internacionais. Isso ampliaria o protagonismo brasileiro, fortaleceria a credibilidade do SBCE e posicionaria o Brasil como um dos maiores fornecedores globais de mitigação regulada, com integridade ambiental auditável pela ONU.
A conferência em Belém representa, portanto, uma oportunidade histórica. O país que tem a maior floresta tropical do mundo, que abriga a COP30 e que possui uma das legislações ambientais mais completas, tem agora a chance de resolver a incoerência que o acompanha há mais de uma década: proteger muito, mas reconhecer pouco.
Se o governo conseguir alinhar o Plano Clima, o Código Florestal, o artigo 6.4, os ITMOs do artigo 6.2 e o SBCE em uma única lógica de implementação, o Brasil poderá transformar seu rigor ambiental em vantagem competitiva global — e redefinir seu papel na governança climática internacional




