Pejorativo e impreciso: trabalho (in)dependente

Crédito: Paulo Pinto/Agência Brasil

É pejorativo tratar o trabalhador independente no Brasil como se não trabalhasse, ou pior, o fizesse de forma amoral e ilegal, ou até masoquista (porque poderia ter emprego mas não aceita), ou como se grande maioria não se cadastrasse no fisco e não recolhesse impostos. Não há mais como ignorar e ainda mais negar que as relações trabalhistas já mudaram, de forma estrutural e irreversível, como em todo o mundo. Falta readequar práticas e políticas públicas para construir uma nova e universal proteção social.

É impreciso classificar todos os trabalhadores que atuam de forma independente como precarizado e há um grande desafio em identificar e medir de forma exata e correta a parcela desses trabalhadores que são realmente dependentes, seja sob uma perspectiva econômica, quando o trabalhador independente tem um único cliente como sua principal fonte de renda, seja sob uma perspectiva pessoal ou organizacional, quando não possui autoridade para decidir o conteúdo de seu trabalho, os métodos utilizados ou o local ou os horários de execução de seus serviços.

É infeliz e inadequada alcunha de “pejotizado”. Essa expressão pressupõe que é sempre a pessoa física que optou por se tornar jurídica, alguém que por masoquismo abriria mão de salário férias, gratificação natalina e previdência partindo da ideia de que poderia, por decisão própria ser empregada com carteira assinada. É uma narrativa que ignora a figura do empregador, como se e a decisão de empregar não dependesse dele, pressupondo ainda que não saiba calcular os impostos e encargos de uma contratação, que possa pagar qualquer valor e que ainda assim consiga competir, inclusive com produtos e serviços importado de outros países que pagam salários e encargos menores.

Não se deve tomar a parte pelo todo. Para ajudar a não se incorrer nesse equívoco se propõe abordar neste artigo como é difícil e complexo conceituar, identificar e, sobretudo, mensurar aquele que seja realmente um trabalhador dependente ou falso independente. Em um cada vez mais amplo conjunto de trabalhadores ocupados e não contratados como um empregado formal são imensas as diferenças quanto aos graus de autonomia e aos padrões de dependência, seja pela diversificação (ou concentração) da clientela, seja pela capacidade de organizar o tempo e o modo de execução do trabalho.

Um levantamento da bibliografia internacional recente recomenda extrema cautela nesta avaliação[1]. Para começar há um amplo leque de nomenclaturas do fenômeno diante da imensa zona cinzenta para distinguir um trabalhador autônomo independente de um dependente: dependent, quasi, economically dependent, bogus/fake/false/sham, masked, involuntary, misclassified self-employment, disguised employment, entre outras[2]. Esta ampla e diversificada lista revela uma disputa conceitual e uma sobreposição de categorias nesse fenômeno. Para simplificar, neste artigo, se optou pelo simples conceito de trabalhador dependente, uma vez que se prefere também o conceito de independente, para abranger todo trabalho realizado no País sem assinatura da carteira profissional de trabalho.

O debate internacional, como se vê já pelas múltiplas definições, não apresenta unanimidade no campo teórico, econômico ou jurídico e no jurídico, do que seja um trabalhador “autônomo dependente”, e os ordenamentos nacionais variam nos critérios de enquadramento. A rigor, mesmo o EU Labour Force Survey (EU-LFS)[3], a maior pesquisa amostral realizada com domicílios ou indivíduos europeus, contém poucas perguntas diretamente voltadas ao tema e enfrenta não-respostas relevantes em alguns países, o que recomenda prudência comparativa.

Passando para o campo da mensuração, poucas obras publicadas chegam a tal estágio. Dentre as mais recentes e com tal objetivo específico. Vale destacar o relatório intitulado “Extent of Dependent Self-Employment in the European Union[4], publicado em 2023 pelo European Labour Authority — agência da União Europeia voltada para a legislação trabalhista e segurança social — busca identificar e mensurar a figura do self-employment (trabalho por conta própria) no bloco europeu. Desde o início e de forma veemente, chamam atenção para a heterogeneidade das relações laborais e para a dificuldade em mapear todas as diferentes formas de trabalho independente. A despeito dessas observações, o relatório estima que o percentual do trabalho independente é de 13,8% do emprego total (aproximadamente, 10% da população economicamente ativa).

Em termos conceituais, o relatório europeu tipifica os trabalhadores em dois grupos: 1- “independent/genuine self-employed” (trabalhadores genuinamente autônomos e  independentes), que atuam por conta própria com portfólio mais amplo de clientes e maior controle sobre o trabalho, exibindo baixa dependência econômica; e 2- “dependent self-employed” (trabalhadores autônomos mas dependentes), que apresentam maior concentração de receitas na venda de bens e serviços para poucos clientes (ou um único) cliente e menor autonomia organizacional.

Para operacionalizar essa distinção, o relatório europeu combina duas dimensões observáveis do questionário aplicado a uma amostra robusta, quantificando os autônomos com características de dependência por intermédio de dois critérios específicos: 1- dependência econômica: trabalhar para um único cliente ou ter cliente dominante responsável por 75% ou mais do rendimento; 2- dependência organizacional: quando o(s) cliente(s) decide(m) o início e o fim do horário de trabalho do autônomo. Somente quando ambas as condições se verificam, simultaneamente, o trabalhador por conta própria é classificado como portador de características de dependência.

A metodologia aplicada no relatório supracitado se baseou em pesquisa amostral de 2.580.815 famílias, dos quais cerca de 160.245 trabalhadores afirmam atuar por conta própria. Este relatório dá conta que a ocorrência simultânea dos dois tipos de dependências só foi atribuída a tão somente 3,7% daqueles que responderam que trabalham por conta própria.[5] Em termos mais precisos, tal percentual reduzido compreende a interseção entre o critério da dependência econômica e da dependência organizacional no âmbito da pesquisa empreendida.

Caso se considere exclusivamente o total daqueles trabalhadores por conta própria que dependem economicamente de um cliente (ou tendo ele respondido por pelo 75% ou mais da sua renda) esse percentual sobre para 13,9%[6]. Do mesmo modo, quando se considera exclusivamente o total dos trabalhadores por conta própria que apresentam carência de autonomia para definição do seu horário de trabalho e alguma dependência organizacional esse percentual sobre para 19%[7]. Não há uma clara correlação entre proporção de trabalhadores dependentes e desenvolvimento econômico e humano na Europa.

A título de curiosidade, em Portugal é ainda menor a proporção, 1.9%, dos trabalhadores por conta própria que simultaneamente respondem dependência econômica e organizacional (com 12.6% com um cliente cima de três quartos de seus rendimentos e 12.3% em que o cliente fixa o horário de trabalho).[8]

União Europeia aparentemente tem uma proporção bem menor de trabalhadores independentes que no Brasil: “cerca de 20 milhões… que representam quase 10% da população ativa…”. Ainda assim, foram propostas recomendações com alertas importantes para os efeitos da digitalização, inteligência artificial e gestão algoritmia sobre o futuro do trabalho independente autônomo “…Não beneficiam de plena proteção social, mas não deixam de estar igualmente sujeitos a decisões automatizadas, monitorização e avaliações de desempenho. Para garantir a equidade e evitar situações de exploração, em todas as formas de trabalho moderno, as disposições da presente diretiva devem aplicar-se aos trabalhadores independentes individuais.”[9]

O debate brasileiro precisa tirar lições do internacional, em suas múltiplas e novas abordagens, em particular para reconhecer como é tão difícil traçar claras fronteiras entre as diferentes categorias de trabalhadores e, quando se tentou fazer isso com mais detalhes, como no caso europeu, é muito pequena a parcela daquelas nitidamente caracterizados como dependentes.

O ideal seria realizar pesquisas de grande envergadura amostral e detalhamento temático antes de se emitir tantas opiniões públicas, especialmente por algumas autoridades governamentais e fiscalizadoras, que, em regra, parece presas a um passado em que só existiam duas hipóteses para se trabalhar: ou com carteira assinada, ou como informal e ilegal. Por maior que sejam as diferenças econômicas e sociais, é tão reduzida a parcela dos dependentes na Europa que parece muito difícil que uma apuração brasileira revele um cenário oposto, em que sejam falsos independentes a maioria dos trabalhadores ocupados e sem carteira.

É forçoso atualizar e precisar o diagnóstico de onde se está para poder definir uma estratégia de onde se quer chegar, sobretudo, em um cenário cuja proporção dos trabalhadores ocupados, mas sem emprego tradicional e sem proteção trabalhista já era de 51,1% em junho de 2025 (sendo 21,8% sem carteira, 10,1% donos do seu próprio negócio com CNPJ e 19,2% donos do seu próprio negócio sem CNPJ)[10], representando um percentual substantivamente superior ao estimado no bloco europeu.

Reconhecer a diversidade das formas de trabalhos e, particularmente, melhor compreender e tratar o trabalhador independente é crucial para firmar um novo pacto social e adotar políticas públicas mais inclusivas e abrangentes. Não é só uma mera questão de semântica. Urge mapear sem preconceitos ou dogmas as diferentes categorias de trabalhadores brasileiros. É bem provável que, como na Europa, seja uma minoria os de falsos independentes.

Para combater tais fraudes e falsificações em relação ao trabalho independente, a era digital abre imensas oportunidades aos órgãos públicos fiscalizadores, que detém cada vez mais dados sobre economia e sociedade. Unificar cadastros e processar todas as transações econômicas e sociais são as maiores virtudes e vantagens trazidas pela recente reforma dos tributos sobre bens e serviços, tendência que deve se acentuar com os instrumentos eletrônicos trazidos pela reforma tributária do consumo como documentos fiscais eletrônicos e split payment.

O fisco terá em mãos novos e mais precisos instrumentos para poder verificar se um prestador de serviço não é dono de seu próprio negócio, e sim depende econômica e organizacionalmente de quem o contrata, e à luz da legislação vigente. Lembrando, por exemplo, que esta já admite até mesmo a prestação de serviços para um só cliente, como claramente autorizado pelo art. 129 da Lei n. 11.196 de 2005 – chamada Lei do Bem.[11] A natural e permanente missão de quem deve deter e exercer o poder de polícia, para combater abusos e desvios, não deve ser confundida com a de quem precisa formular e executar políticas, sociais e econômicas, que contemplem todos os trabalhadores brasileiros, com ou sem emprego formal.

Tomar a exceção como regra talvez confunda as autoridades governamentais e a maioria dos parlamentares, mas estes estão sujeitos ao crivo dos eleitores, em ambos os casos, como em demais assuntos públicos. Já os magistrados enfrentam um desafio permanente porque a Constituição não lhe dá poderes para zelar tão somente pelos direitos dos empregados e para renegar os demais trabalhadores a cidadãos de casta inferior – aliás, nome e sigla do tribunal superior é TST e não TSE[12]. Neste cenário, a Justiça poderia alertar que, por Direito, a proteção social deve ser oferecida a todos que trabalham, o que significa repensar os esquemas atuais, de previdência, de saúde e de assistência (por exemplo, no caso específico do seguro-desemprego, talvez seja preciso ser revisitado como seguro-desocupado), que não podem mais se limitar apenas aquelas que empregados com carteira assinada.

Há 37 anos, os Constituintes já foram sábios ao adotar o conceito inovador de seguridade social, seja para fins de benefícios e serviços, seja para seu custeio. Não se contribui apenas sobre folha salarial, como também sobre receitas e sobre lucros, inclusive aquelas empresas sem funcionários. Tanto não se pode tomar a exceção de falsos trabalhadores independentes como regras, quanto não se pode reduzir a análise dos aportes apenas ao que se contribui sobre salário. É preciso pensar em seguridade e não apenas em previdência. Falta ainda tirar do papel princípios sociais básicos da Constituição mais duradoura em tempos de democracia do Brasil.

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