Entre 4 de novembro de 2024 e 3 de janeiro, o Ministério da Gestão e da Inovação (MGI) e a Escola Nacional de Administração Pública (Enap) se mobilizaram para coletar a percepção anônima das milhares de pessoas que trabalham no serviço público sobre temas como o ambiente de trabalho, sua relação com as lideranças e com os órgãos em que atuam.
Os questionários da pesquisa Vozes do Serviço Público Federal foram distribuídos para um total de 532.904 pessoas, entre concursados, temporários, comissionados e terceirizados. Ao final do processo, quase 55 mil (cerca de 10%) responderam. Essa amostragem, na avaliação do diretor de Altos Estudos da Enap, o economista Alexandre Gomide, permite uma análise criteriosa de diferentes variáveis no serviço público, como o impacto da remuneração no trabalho.
O pesquisador, responsável pelos cursos de mestrado e doutorado da Enap, também mergulha em temas caros aos servidores e, especialmente, a quem ingressa agora na máquina, como qualificação e a retenção de talentos, inclusive na área de análise de dados. E destaca ainda o papel das escolas de governo para conectar a burocracia com os desafios de ordem política na produção de políticas públicas: “Enquanto técnico ou gestor, você tem que negociar com os órgãos de controle e saber as diferentes perspectivas, os interesses desses, e saber navegar nesse mundo político”. A seguir, a íntegra de entrevista:
Isso é fazer política de gestão de pessoas baseada em evidências. No caso, a gente sabia já que o uso de surveys, da gente aplicar pesquisas, era um elemento importantíssimo. Ver a percepção dos servidores sobre o Estado porque são eles que estão lá dentro. Os dados externos administrativos não revelam como a máquina está funcionando por dentro: clima, liderança, autonomia, reconhecimento, etc.
Então, a gente sabia que entender a percepção dos servidores é um dado fundamental. Em 2018, a gente fez um pesquisa que não foi tão grande como essa. Foi uma primeira tentativa, em que a gente teve bons resultados e teve até um destaque internacional. Aí, quando começou esse governo, eu já vim para a Enap, conversei com a nossa presidenta, a Bethânia (Lemos), sobre a ideia de fazer um grande survey.
Como eu sou originalmente do Ipea e o secretário de Gestão de Pessoas, o José Celso (Cardoso Junior) também é meu colega, eu levei ideia para ele. Ele falou: ‘olha, tem um pessoal aqui querendo fazer isso’. Aí, deu aquela conjunção de ter as pessoas certas, no momento certo, querendo realmente ter a percepção dos servidores quanto ao clima organizacional e outros fatores também.
A gente desenhou a pesquisa, numa equipe conjunta, com a colaboração do pessoal da Universidade de Stanford (EUA), que tem um survey global de servidores públicos. Essa pesquisa vai servir para comparabilidade internacional, de forma que a gente poderá comparar o Brasil com outros países similares, e se situar e ver o que a gente pode aprender também.
O que pretendem extrair dessa pesquisa?
A gente quer testar várias hipóteses. A gente pode fazer um modelo que vê qual que é o papel da burocracia ou do serviço público: liderança, capacidade, qualificação… Qual é o peso nas entregas? Por meio de trabalhos econométricos e estatísticos, podemos ver o que dessa capacidade burocrática é mais importante para ter um impacto nas entregas.
Pode testar várias hipóteses. Também haverá relatórios por órgãos. Nos órgãos que responderam e que conseguiram amostragem mínima, a gente vai poder fazer uma devolutiva, falando: ‘olha, esse é o diagnóstico que a gente tem para vocês’. E isso pode auxiliar os órgãos a fazerem as políticas de gestão de pessoas. E outras ainda: ver quais as carreiras que tem uma percepção melhor sobre o clima organizacional, sobre liderança, sobre capacitação.
Podemos ajudar a desenhar programas de capacitação. A gente pode ver se a satisfação, por exemplo, está relacionada com salário ou não. Então, é uma fonte de dados muito rica para testar várias hipóteses e dar subsídio para fazer política de gestão de pessoas e política de capacitação com esses dados mais globais. Foi uma construção de um ano e meio.
Em qual etapa do processo vocês estão, após terminada a coleta das respostas dos servidores?
Terminada a coleta, agora a gente vai fazer a limpeza e o tratamento de dados. O segundo passo é ver essas estratificações: carreiras, órgãos, setores. Hipóteses de diversidade, equidade, coisas que têm na pesquisa… Todas essas questões são caras à política de gestão de pessoas.
Podemos cruzar com outros dados, outros registros administrativos. A partir daí, a gente começa a fazer as perguntas. E apresentar os achados e as evidências. A gente tem um cronograma para todo esse ano, que é bastante cheio. Vão acontecer lançamentos. Por enquanto, a gente está com a base de dados e fazendo o tratamento. A gente pretende que essa pesquisa seja anual.
Haverá visibilidade sobre os resultados? Todos vão ficar sabendo o que a pesquisa trouxe?
Vão sim. A gente quer dar uma devolutiva. O nosso benchmark é o Federal Employee Viewpoint Survey (Fevs), produzido pelo Office of Personnel Management (EUA). A gente quer soltar um relatório anual, público, e os relatórios por órgãos também. É inspirado no modelo do Fevs. É importante que não só a gente analise esses dados, mas que a base de dados, não só os relatórios, sejam publicados. E lógico: sem nenhum tipo de identificação, mas que os pesquisadores possam analisar e apresentar a análise para a gente. Quer dizer, de maneira alguma isso ser fechado.
Essa pesquisa ocorreu logo após ou durante o processo de negociação salarial. Vocês não se preocupam que isso pode ter influenciado respostas ou respondentes?
Eu não tenho evidências para poder te responder. Eu acredito que, como a pesquisa agora vai ser anual, a gente vai poder ter vários dados para poder avaliar. Essa é uma primeira foto.
O servidor público tem muito medo de perseguição por sua opinião, pela demonstração das suas insatisfações. Isso é uma barreira que esse tipo de levantamento precisa enfrentar?
É, com certeza. É por isso que a gente garante o anonimato. Essa é a questão da confiança. A confiança do servidor público, saber que respondeu uma pergunta e que isso virou coisas positivas para ele. Isso é fundamental. E não só o servidor público, o servidor privado também. Houve um cuidado na pesquisa de chamar também temporários, terceirizados, comissionados. Existe alguma ideia se será possível validar esses dados?
A gente está começando agora a limpar os dados. A pesquisa terminou no dia 3 de janeiro. Mas, por que a gente resolveu colocar todos eles? Porque queremos saber a opinião deles, se tem diferença. Quem é terceirizado, quem é apenas cargo em comissão, não é? E isso é super importante. A gente pode fazer um contraste. Quem é de carreira, Regime Jurídico Único, contrastando com quem é CLT, quem é cargo de comissão…
“Podemos fazer análise sobre qual é o impacto da remuneração nessa situação do trabalho. Têm modelos preditivos que podem até ver o adoecimento no trabalho. Podemos testar hipóteses: qual é o peso da liderança no desempenho da burocracia? Pode ter muitos dados com relação à capacitação. Onde o governo tem que investir mais na gestão de pessoas? Por exemplo, se a gente achar que um setor ‘A’ tem uma diferença muito grande com relação aos outros setores.”
O que a produção sistemática de pesquisas com esse perfil pode trazer de benefício para a máquina?
A gente pode fazer análise sobre qual é o impacto da remuneração nessa situação do trabalho. Têm modelos preditivos que podem até ver o adoecimento no trabalho. Podemos testar hipóteses: qual é o peso da liderança no desempenho da burocracia? Pode ter muitos dados com relação à capacitação. Onde o governo tem que investir mais na gestão de pessoas? Por exemplo, se a gente achar que um setor ‘A’ tem uma diferença muito grande com relação aos outros setores.
Isso é uma coisa que a gente tem que pensar, né? O que está acontecendo aqui? Nas carreiras transversais, ‘olha, essa carreira, nesse setor, tem um desempenho ou uma percepção bem diferente que outros setores’. Então, você coloca muito mais evidências para fazer política de qualificação, no sentido de dar qualidade ao serviço público. Podemos ver exatamente o que é o serviço público, as pessoas, o peso delas para entregar um bom serviço, porque, às vezes, o problema não pode estar com ela. São hipóteses para testar.
Certamente, a pesquisa vai mostrar o quanto que o serviço público federal pode ser heterogêneo, não é?
Essa heterogeneidade vai sair mesmo, com certeza. Como te disse, a gente não começou a análise dos dados, mas essa heterogeneidade, que é uma marca do serviço público brasileiro, com certeza vai sair. As organizações têm culturas diferentes, têm financiamento diferente, têm organizações que são mais fechadas, 100% de uma carreira. Têm organizações que têm muita gente de fora, muita gente terceirizada… A gente vai poder mapear muito bem essa heterogeneidade para poder fazer política pública.
O percentual de respondentes, embora validado, não é muito alto. Já estavam esperando alguma coisa mais ou menos nessa linha?
A gente esperava isso. Agora, é a limpeza de dados. A gente vai começar a ver quais organizações, quais setores e quais carreiras que teremos uma amostra significativa. Como é um processo de aprendizado constante, no lançamento da próxima pesquisa, a gente vai saber onde trabalhar, né? É uma primeira pesquisa.
As pessoas têm que sentir que elas estão ganhando com isso, e que isso é um incentivo. A pessoa perde 20 minutos para preencher um formulário e precisa ver que isso vale a pena, que isso resultou em alguma coisa que melhorou para ela ou tem uma informação que chegou para mim e que eu não tinha. Se as pessoas não verem no que isso resultou, você não está incentivando as pessoas a responder a próxima pesquisa.
Ou seja, a bola está com a Administração nesse momento?
Está. Vamos trabalhar para dar essa devolutiva e assegurar a continuidade, o processo contínuo. Isso a gente quer continuar. Em termos de gestão de pessoas, isso é um passo muito importante. Porque muitos países já tinham esse tipo de survey, no modelo da OCDE, e o Brasil não tinha. A gente só tinha fotos esporádicas de pedaços. Agora, ter todo o serviço público (federal) e a forma como ela foi aplicada, que foi pelo SouGov.br, que a pessoa podia responder no celular, isso foi um avanço bem legal e é algo que países como os Estados Unidos não têm. Quando a gente conversou com eles, a gente viu que tinha muito mais vantagens para ter uma pesquisa melhor comparada a que eles têm. Então, a gente está bastante animado.
Capacidade estatal e conexão entre técnica e política
O senhor mencionou as capacidades burocráticas e o impacto nas entregas. Como definiria as capacidades estatais, tema recorrente nos debates sobre melhoria no serviço público? E qual é o papel das escolas de governo, como a Enap, para reforçá-las?
As capacidades estatais são as habilidades, as competências burocráticas organizacionais do Estado para entregar política pública. Dentro dessas qualidades burocráticas organizacionais, tem um grande elemento explicativo da efetividade da política pública: a qualidade da burocracia, ou a qualidade do serviço público. A literatura, com estudos empíricos e pesquisas, aponta que uma boa burocracia é um fator preditivo muito robusto que se faz uma boa entrega. A escola de governo entra nisso porque qualifica, capacita e trabalha na formação dos servidores públicos.
Você tem o momento da entrada do serviço público, que é o concurso. No concurso, entra quem demonstra competências. Muitos servidores públicos têm formações diferentes, e eles têm que ser formados para entender como funciona o setor público. Tem a educação continuada, que você vai formando as carreiras, até programas específicos. A gente tem o mestrado e o doutorado profissional em políticas públicas. Então, a escola de governo é fundamental para as capacidades estatais. Ela ajuda a qualificar a burocracia, que é um elemento importantíssimo para você ter um Estado mais efetivo e poder ter boas entregas.
Como fazer com que esse servidor absorva as habilidades necessárias para liderar, considerando que esse é o caminho natural à medida que aumenta a sua qualificação?
Vamos falar dos mestrados e doutorados profissionalizados, como contribuímos para isso. Primeiro, toda a nossa orientação com o mestrado profissionalizante não é no sentido acadêmico, é no sentido de você aplicar na prática o conhecimento. Por isso que é o elemento profissionalizante. As pessoas vão lá estudar problemas dos órgãos. Nesse sentido, o aluno pega todo o conhecimento e a teoria e ajuda a formular, resolver problemas, aplicar o conhecimento ao problema.
A Enap também tem outras áreas que formam gestores, no sentido da educação continuada. Na formação de lideranças, o mestrado ajuda muito. O doutorado ajuda a ter lideranças sólidas para que saibam exatamente com o que está lidando, que saibam lidar com evidências e tenham as habilidades gerenciais, que também a escola fornece complementarmente.
Os temas de interesse das pessoas que procuram os cursos de mestrado e doutorado estão em linha com as prioridades do Estado nesse momento? Quais seriam essas áreas?
Muita gente quer a qualificação. O nosso processo seletivo passa por uma prova objetiva, depois tem a avaliação de projeto e a entrevista. Então, fazemos questão de ter gente que está estudando temas relevantes na agenda da administração pública e do Estado no Brasil. A avaliação de políticas públicas aparece muito. Análise de dados, formulação de políticas públicas, problemas de gestão. Tem muitas pessoas que estudam o papel da liderança, clima organizacional, enfim… Então, já no processo seletivo, a gente garante esse alinhamento que seja integral.
“As relações políticas estão muito entranhadas na administração pública. O estudante tem que saber como funciona o sistema político brasileiro, a dinâmica política de produção dessas políticas. Você tem que negociar com atores, conversar com a sociedade civil. Vai ter que negociar com o Congresso. Enquanto técnico ou gestor, você tem que negociar com os órgãos de controle e saber as diferentes perspectivas, os interesses que esses atores têm, e saber navegar nesse mundo político.”
Quais são as áreas que o senhor entende que o Estado hoje precisa mais?
Avaliação de políticas públicas, não é só aquela avaliação de impacto no final, mas a habilidade de construir políticas públicas consistentes, com as metodologias de ponta. Construir uma boa árvore de problemas, um bom marco lógico dos programas, ter indicadores… E outra questão que a gente procura dar no nosso curso é a pessoa entender a relação que existe entre técnica e política. A administração pública não é um campo 100% técnico.
As relações políticas estão muito entranhadas na administração pública. O estudante tem que saber como funciona o sistema político brasileiro, a dinâmica política de produção dessas políticas. Você tem que negociar com atores, conversar com a sociedade civil. Vai ter que negociar com o Congresso. Enquanto técnico ou gestor, você tem que negociar com os órgãos de controle e saber as diferentes perspectivas, os interesses que esses atores têm, e saber navegar nesse mundo político. Essa é uma grande habilidade também que a gente está investindo. Saber formular politicamente, navegar no nível político, ajudar a construir coalizões de apoiadores para determinadas políticas, com o diálogo com o Congresso, filantropias e etc. Essa capacidade mais relacional política é muito importante.
A ideia é conectar a burocracia com a política?
Isso é fundamental. O nome política pública tem o nome de política, de um programa mesmo, de uma diretriz, e tem o nome de como você constrói e navega no mundo político. Então, uma qualidade fundamental, além da qualidade analítica, ter essa sapiência. Hoje, qualquer burocratas vai sentar para conversar com outros órgãos, vai conversar com a sociedade civil, muitos deles sentam com parlamentares, com prefeitos, secretários municipais, estaduais. você tem que construir uma política pública e dar essa viabilidade, legitimidade, superação política. Isso é fundamental porque a sociedade é permeada por diferentes visões de mundo.
Por exemplo, no caso do SUS, os burocratas federais estão em articulação com governadores, então essa questão relacional é importantíssima. Então, ter qualidades técnicas e analíticas e essa habilidade mais relacional são as duas grandes áreas que se deve investir. Entender o sistema político brasileiro, como funciona o presidencialismo de coalizão, O que funciona e o que não funciona, saber operar as regras do jogo das instituições políticas brasileiras é fundamental.
Existe alguma perspectiva de expansão dos cursos de doutorado e mestrado da Enap?
A demanda é muito grande, mas a regulamentação dos mestrados e doutorados é específica. A proposta deve ser aprovada pela CAPES, é um processo muito trabalhoso. Estamos com as nossas turmas anuais, temos dois mestrados e um doutorado. A demanda é muito grande, mas, para ampliar, isso demora um pouco.
Como nossos programas são relativamente novos, nos últimos dois anos, a gente investiu muito na excelência e na qualificação desses cursos. Queremos conseguir uma boa avaliação da CAPES. Aí sim, a gente pode, com notas melhores, abrir mais turmas. A gente está dedicado agora a fortalecer e tornar nossos cursos de excelência. Diferentemente do MBA, o curso gera conhecimento para o Estado, para quem está dentro do Estado. A gente tem muito feedback positivo na contribuição de alunos em alguma política pública.
Falando de uma análise muito particular, a análise de dados, em que medida a capacidade de trabalhar sobre grande quantidade de dados e de cruzá-los para formular políticas públicas é importante?
Essa capacidade de análise de dados é fundamental e cada vez mais necessária. A gente tem cada vez mais dados, o chamado big data. E o governo brasileiro também se destaca por ter dados organizados, inclusive, vários pesquisadores internacionais pesquisam o Brasil porque tem dados. Agora, com a inteligência artificial, passa a ser fundamental ter letramento de dados. Aqui na Enap, a gente tem uma área de dados, até o Galileu (Kim, do Banco Mundial), que deu a entrevista para você, ele viu que a gente está indo muito bem nisso.
O governo precisa muito de apoio externo, conexões externas, mas eu acho que os órgãos públicos têm que construir capacidade de análise de dados para poder dialogar com os consultores. Então, construir essa capacidade analítica, não precisa ser 100%, mas você tem que ter uma equipe que saiba encomendar, dialogar e saiba ter a capacidade instalada para poder lidar com esses dados. Na Enap, a gente faz análise de dados e têm uma rede. Quando vem um pedido para a gente analisar dados, a gente mobiliza a rede, mas tem a capacidade interna de pilotar isso. Construir essa capacidade mínima interna é fundamental para os órgãos públicos.
Na sua visão, cada órgão tem que ter sua própria capacidade num futuro próximo para isso?
Eu acho que sim, mas pelo menos assim, como eu disse, não é uma questão de ter 100% ser totalmente autônomo, mas ter pessoas que saibam fazer interligação com outros órgãos. Os dados são interoperáveis, eles conversam entre si.
Isso também é relevante para fazer contrato, né?
Exato! Muitas vezes você não tem essa capacidade nem para contratar, e daí fica refém.
“A gente tenta valorizar as pessoas para que elas possam realmente fazer aquilo que elas gostam, e isso está dando certo. Tem muita gente que, às vezes, até recebe uma proposta para ganhar mais do setor privado, e muitas vezes fala: ‘não, aqui está legal, eu vejo um propósito naquilo que eu estou fazendo, eu vejo que meu trabalho faz diferença’.”
Como reter na administração pública cientistas de dados, que hoje é um profissional com peso e preço alto no mercado?
Na Enap, a gente procura reter os talentos primeiro no recrutamento, ao escolher pessoas com grande potencial para contribuir com essa área de dados. E dar boas condições de trabalho. Como a Enap é uma casa de capacitação, quando a gente tem a oportunidade, investe na capacitação dessas pessoas, que é um reconhecimento indireto. Às vezes, você não pode aumentar o salário, porque o salário é fixado, mas você investir na capacitação é uma forma de outra pessoa estar sendo reconhecida e recompensada de alguma maneira, inclusive poder crescer na carreira.
Lá na Enap a gente faz muito assim: pegar um analista de dados e fazer ele trabalhar com dados exatamente. A gente tenta valorizar as pessoas para que elas possam realmente fazer aquilo que elas gostam, e isso está dando certo. Tem muita gente que, às vezes, até recebe uma proposta para ganhar mais do setor privado, e muitas vezes fala: ‘não, aqui está legal, eu vejo um propósito naquilo que eu estou fazendo, eu vejo que meu trabalho faz diferença’.
Alguém que faz análise de uma política pública e depois vê que aquele dado ajudou a contribuir em algo. Então, tem um pouco dessa compensação intrínseca que algumas pessoas têm, não é só a grana, né? As pessoas querem ter uma boa vida, mas a partir do momento que você tem aquilo que precisa para sobreviver legal, muitas vezes o propósito e a qualidade do trabalho recompensa mais. Então, a gente tenta equilibrar nisso, e a gente conseguiu construir uma área de dados na ENAP que apresenta muitos resultados. Está indo muito bem.
Ainda tratando de capacidades estatais, tem um debate super importante, ainda não concluído, que é a revisão do decreto-lei 200, de 1967. Qual é a sua participação e da Enap nesse processo?
Estamos fazendo um estudo que vai auxiliar a comissão. Esse relatório vai fechar agora nesse mês. A gente quer entender o ecossistema organizacional. O que é que a gente está buscando? Em cima de um princípio que as organizações públicas precisam ser flexíveis e dinâmicas, elas também devem promover estabilidade. Não é estabilidade do servidor, mas a estabilidade das políticas públicas. Combinar essa estabilidade com agilidade é o santo grau. E a gente está fazendo uma pesquisa para pegar ecossistemas de políticas públicas e ver a tipologia das organizações.
Quer dizer, um determinado setor, ela tem administração direta, indireta, tem empresa estatal… O decreto-lei 200 tem uma visão de administração direta, indireta. Talvez possamos pensar a maneira de organizar diferentemente e conseguir ter um ecossistema organizacional que tenha esses atributos. Agilidade, mas ao mesmo tempo estabilidade, resiliência. No setor público, a gente precisa manter as políticas públicas, principalmente as políticas públicas constitucionais. E essa pesquisa nossa a gente vai apresentar na comissão, e esperamos que isso subsidie decisões.
“O Estado precisa entregar, todo o Estado brasileiro. A sociedade é muito dinâmica, as coisas estão se transformando de uma maneira muito rápida, e as pessoas começam a ficar insatisfeitas com as instituições. Então, a gente tem que responder. Isso é fundamental para manter a nossa democracia funcionando. Isso que dá legitimidade e confiança. As pessoas têm que confiar no Estado, não ver o Estado como inimigo. Do contrário, insatisfação popular vai causar muito mais instabilidade política.”
Como é que se busca essa estabilidade dentro desse processo natural da democracia, que é a troca de governos?
Quem dá estabilidade na troca de governos numa democracia é o servidor público. O servidor público fica, e as administrações passam. Agora, o servidor público, idealmente, ele representa essa continuidade e a racionalidade, enquanto as administrações têm seus programas de governo, suas orientações diferentes. Para gente, o servidor público tendo esses valores democráticos, agindo conforme a lei do Estado de Direito, ele serve ao programa que foi eleito na urnas.
Dá para melhorar muito nesse sentido?
Sempre dá. O decreto-lei 200 foi pensado em 1967. Então, essa questão de organização direta e indireta foi uma inovação à época. Hoje, com certeza, a gente precisa de formas muito mais dinâmicas e flexíveis para poder entregar. Mas, lembrando: você tem que ser ágil, estável e combinar a continuidade das políticas públicas em cima do Estado democrático de direito. É uma combinação. Organizações que trabalham com mais flexibilidade, com regimes de trabalho diferentes e vários formatos organizacionais, para além do que a gente tem hoje.
Se a administração não tentar ser mais efetiva para fazer boas entregas, qual é o caminho que a defesa das instituições e da democracia tem no atual contexto político?
A gente tem que fazer, não tem opção de não fazer. O Estado precisa entregar, todo o Estado brasileiro. A sociedade é muito dinâmica, as coisas estão se transformando de uma maneira muito rápida, e as pessoas começam a ficar insatisfeitas com as instituições. Então, a gente tem que responder. Isso é fundamental para manter a nossa democracia funcionando. Isso que dá legitimidade e confiança. As pessoas têm que confiar no Estado, não ver o Estado como inimigo. Do contrário, insatisfação popular vai causar muito mais instabilidade política.