O abuso regulatório na jurisdição constitucional

Fellipe Sampaio/SCO/STF

O papel da jurisdição constitucional como foro de debate sobre o modelo das agências reguladoras é um dado da realidade.[1] Em um cenário em que os poderes de tais entidades são continuamente revisitados, a agenda do STF ganha novos contornos – dessa vez, para o enfrentamento de hipóteses de abuso regulatório por parte das agências reguladoras.

De fato, a construção da jurisprudência do STF se voltou, inicialmente, a casos em que se questionava o próprio modelo institucional das agências reguladoras, especialmente no que diz respeito à constitucionalidade, em abstrato, dos poderes normativos atribuídos a essas entidades.

Na ADI 1.668, o STF adotou a orientação de que o poder de editar normas gerais e abstratas pela Anatel era possível, desde que subordinada à legislação. Como resultado, foi conferida interpretação conforme a Constituição em relação aos dispositivos da Lei 9.472/97 para fixar a tese de que os atos normativos das agências reguladoras deveriam necessariamente observar a lei (preferência da lei).

Nas ADIs 4.679, 4.874 e 5.906, por sua vez, o STF reconheceu que a Constituição chancela a atribuição de poderes normativos à Ancine, à Anvisa e à ANTT, respectivamente, desde que sua atuação seja pautada por princípios inteligíveis (intelligible principles) capazes de permitir o controle legislativo e judicial sobre os atos da Administração.

O STF ingressa, agora, em uma nova fase de controle sobre as agências reguladoras: definir os contornos e limites da função normativa exercida pelas agências reguladoras nos casos em que atos concretos editados por tais autoridades sejam questionados. Caberá ao Supremo Tribunal Federal definir em que termos o exercício do poder regulamentar das agências reguladoras é compatível com a Constituição e com os parâmetros estabelecidos pelo Poder Legislativo.

Muito recentemente, no Tema de Repercussão Geral 1.341, o ministro Alexandre de Moraes destacou que “a alegação de abuso de poder regulamentar por parte da Anvisa (…) ostenta inegável questão constitucional”. No mérito, o STF discutirá a constitucionalidade da RDC 327/2019 da Anvisa, que proíbe a manipulação de fórmulas magistrais contendo derivados ou fitofármacos à base de cannabis e limita sua dispensação a farmácias sem manipulação ou drogarias. No leading case, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJSP) reconheceu que a Anvisa extrapolou os limites regulamentares ao criar distinção entre farmácias com e sem manipulação, sem respaldo em lei.

De igual modo, o plenário do STF julgará, no Tema de Repercussão Geral 1.252, a constitucionalidade da iniciativa da Anvisa de proibir, por meio da RDC 14/2012, a importação e a comercialização no Brasil de cigarros que contenham aditivos por ela especificados. A matéria, que havia sido objeto de empate no bojo da ADI 4.874, envolve os limites das competências sanitárias da Anvisa para determinar o banimento de produtos fumígenos consumidos no Brasil sob a ótica da sua legalidade e proporcionalidade.

O fato de ambos os casos envolverem a atuação da Anvisa é digno de nota. Conquanto a entidade tenha sua capacidade institucional reforçada pelo STF em casos específicos envolvendo registros sanitários de medicamentos (ADIs 5.501 e 5.779), fato é que a Anvisa já teve sua atuação invalidada na regulação geral e abstrata de atividades econômicas. Isso se deu no caso da proibição de comércio de artigos de conveniência em farmácias e drogarias (ADI 4.093) e em caso que envolvia regras sobre publicidade de medicamento que extrapolaram o disposto na Lei 9.294/96 (REsp 2.035.645).

A nova agenda do Supremo Tribunal Federal aprofunda a definição desses limites. As decisões da Corte na nova fase serão determinantes para que se possam compreender (i) os standards de legalidade entendidos como suficientes para a edição de atos normativos restritivos de liberdades em questões de significativo relevo econômico e político[2]; e (ii) quais os limites substantivos extraídos da Constituição para a constitucionalidade de atos restritivos (ou proscritivos) sobre a livre iniciativa e sobre a autodeterminação pessoal.

Ao fim e ao cabo, a nova agenda do STF será igualmente determinante para (dis)tensionar os crescentes embates entre as agências reguladoras e os Poderes da República e definir os próprios quadrantes do Estado de Direito e do regime de liberdades no Brasil.


[1]Sobre o tema, v. JORDÃO, Eduardo; TOLEDO, Renato; BRUMATI, Luiza. “O STF e o controle das leis sobre o regime jurídico das agências reguladoras federais”. In: Revista de Investigações Constitucionais, v. 7, p. 549-600, 2020.

[2]Nesse ponto, veja-se que, em 2022, no julgamento do caso West Virginia v. EPA, a Suprema Corte dos Estados Unidos adotou amajor questions doctrinee definiu que, para o exercício dos poderes normativos questões de significativo relevo econômico e político, o Congresso deveria estipular diretrizes claras e objetivas sobre a matéria – não sendo possível, por conseguinte, delegar funções normativas às agências sem critérios limitadores.

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