A ofensiva da CCJ da Câmara contra o STF

Crédito: Pedro França/Agência Senado

Prédio do Congresso Nacional visto do STF / Crédito: Pedro França/Agência Senado

Deflagrada por parlamentares vinculados à direita, ao bolsonarismo e ao centrão com o objetivo de derrubar decisões do Supremo Tribunal Federal, limitar as prerrogativas de seus 11 ministros, restringir decisões monocráticas e estabelecer novas condutas passíveis de impeachment para magistrados da corte encarregada de promover o controle da constitucionalidade, a ofensiva da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara dos Deputados contra a corte é triplamente perigosa.

Em primeiro lugar, ela ameaça o Estado democrático de Direito, pondo em risco a ordem institucional do país consagrada por uma Constituição que já é uma das mais longevas de nossa história.

Em segundo lugar, abre caminho para um choque entre Poderes a dois anos da próxima eleição presidencial, o que pode multiplicar as incertezas quanto ao nosso futuro próximo. E, em terceiro lugar, ela pode resultar na anistia aos participantes das manifestações golpistas de 8 de janeiro de 2023, estimulando novos atos inconsequentes e irresponsáveis com base no princípio de que os fins justificam os meios.

O objetivo das bancadas vinculadas à direita, ao bolsonarismo e ao centrão é esvaziar a corte que, por ser encarregada de zelar pela constitucionalidade das leis e de exercer uma atuação contramajoritária no controle dos demais Poderes, dispõe de ampla competência e de acentuado poder em matéria de revisão legislativa.

Ao justificar sua iniciativa, os parlamentares vinculados à direita, ao bolsonarismo e ao centrão alegam que, nos últimos anos, o STF teria exacerbado o exercício de suas funções de controle, correção e supressão de omissões inconstitucionais dos demais Poderes.

Em outras palavras, ao avocar para si prerrogativas que seriam do Legislativo e ao declarar a inconstitucionalidade de projetos do Executivo formulados por governantes eleitos democraticamente, a corte teria deixado de ser uma instituição jurídica, encarregada de resolver tecnicamente os mais variados tipos de litígio, inclusive questões políticas, abrindo assim caminho para uma “ditadura do Judiciário”.

Contudo, nenhum desses argumentos é procedente. Lido com a devida atenção, o capítulo legislativo da Constituição é claro e preciso ao definir os casos em que poder constituinte derivado não pode interferir nem aprovar determinadas restrições impostas pelo poder constituinte originário. Este é um poder inicial, soberano, autônomo. Já o poder constituinte derivado é subordinado, limitado e condicionado. Em termos concretos, isso quer dizer que há limitações e restrições com relação às possibilidades de alteração de determinados mandamentos constitucionais.

Entre essas limitações, uma trata das chamadas cláusulas pétreas – ou seja, de normas constitucionais que não podem ser modificadas, alteradas ou mudadas em qualquer circunstância e sob qualquer justificativa. Nesse sentido, uma das principais referências do texto constitucional promulgado em outubro de 1988 é o artigo 60, que trata do chamado processo de emendamento constitucional. O parágrafo 4° de seu inciso III prima pela objetividade e pela clareza. “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir (…) a separação de poderes”, diz ele.

Por isso, se as bancadas vinculadas à direita, ao bolsonarismo e ao centrão conseguirem aprovar no plenário da Câmara as imprudentes, inconsequentes e irresponsáveis propostas de emenda constitucional já votadas pela CCJ, quem julgará a inconstitucionalidade desses textos será o próprio STF. Para os leigos em matéria de direito, isso pode parecer uma contradição. Mas, para os constitucionalistas, não há contradição alguma. Isto porque, no Estado democrático de Direito, as cortes encarregadas de zelar pelo controle da constitucionalidade têm competência legal para declarar a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional aprovada pelo Legislativo.

Não há novidade alguma nessa discussão. Se tivessem bom senso, caráter e assessores jurídicos mais competentes, os líderes das bancadas vinculadas à direita, ao bolsonarismo e ao centrão saberiam que, numa palestra proferida na Universidade de Heidelberg por volta de 1950, o conhecido e respeitado jurista alemão Otto Bachof (1914-2006) estimulou um profundo debate sobre essa questão.

Em seguida, reuniu todas suas ideias e argumentos num livro intitulado Normas Constitucionais Inconstitucionais, que foi editado em várias línguas – inclusive a portuguesa, por iniciativa da Editora Almedina. Desde então, sua obra se converteu em leitura obrigatória nos cursos de pós-graduação em direito público no Brasil, na América Latina e na Europa.

Além disso, o próprio STF firmou, há tempos, o entendimento de que as Propostas de Emenda à Constituição têm limitações e restrições em seu poder reformador. Em seus arquivos, a corte abriga votos de vários ministros – a começar por um respeitado jurista por sua formação legalista, José Carlos Moreira Alves, que também foi professor titular da Faculdade de Direito da USP e procurador-geral da República – que admitiram em seus julgamentos a hipótese de declaração da institucionalidade de Emendas Constitucionais aprovadas pelo poder constituinte derivado.

Desde então, ficou claro nos meios políticos, jurídicos e judiciais brasileiros que o poder que a Câmara dos Deputados e o Senado têm de reformar a Constituição não é absoluto nem, muito menos, ilimitado. Também ficou claro, em votos de ministros como Sidney Sanches e José Celso de Melo Filho, além do próprio Moreira Alves, que quem tem a prerrogativa de barrar reformas constitucionais que afrontem essas regras é o próprio STF.

É por isso, como disse no início, que a ofensiva das bancadas vinculadas à direita, ao bolsonarismo e ao centrão é perigosa, uma vez que pode deflagrar uma crise institucional generalizada para tentar testar o quanto o Estado democrático de Direito ainda tem capacidade de resiliência – ou seja, o poder de resistir a iniciativas desprezíveis e a estratégias abjetas para miná-lo.

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