O que se espera do STF pós-Bolsonaro

STF / Crédito: Gustavo Moreno/SCO/STF

Vitórias políticas geram custos, responsabilidades. Não são as derrotas apenas que geram prejuízos ou contas a acertar. Quem entra numa disputa político-institucional – mesmo que arrastado – e vence a batalha precisa depois avaliar os estragos e os danos provocados. A vitória demanda humildade. É preciso reconhecer os erros, fraquezas, é necessário recompor apoios, imagem, institucionalidade.

O Supremo venceu a batalha contra Bolsonaro em 2022, mas a expectativa de que reavaliaria sua rota e corrigiria alguns dos seus problemas se frustra. O tribunal avança em questões que realmente precisam seguir, como as investigações em torno do que se passou nos últimos anos em Brasília. Mas aquele cenário de disfunção institucional já não se repete.

As heterodoxias do passado a que ministros apelavam sob o argumento de que certos órgãos estavam aparelhados politicamente por Bolsonaro já soam fora de propósito, geram desconfianças, aprofundam as críticas, alimentam a percepção de um tribunal sem limites.

Por quatro anos Bolsonaro avançou para impor seu projeto autocrata, e dependia do voto em 2022 para ganhar mais quatro anos e tentar concluí-lo. Precisava correr, gerar crises, avançar a galope contra o Supremo. O ciclo do tempo para o STF, entretanto, é distinto do da política. O passar dos anos conta a favor do tribunal em que ministros permanecem até os 75 anos.

Cada poder tem a sua rotação específica. O Executivo possui frequência mais acelerada, diante das demandas da sociedade, da duração do mandato, das pesquisas de opinião; o Legislativo atua no compasso exigido para a construção de consensos; o Judiciário marcha em câmera lenta e, como norma, mantém seu foco no passado. O que não impede, e cada vez mais, que seus integrantes se arvorem o direito de solucionar problemas futuros da política.

O Supremo está sempre adiante porque julga o que passou. “Nós temos paciência, Arthur”, resumiu Moraes ao presidente da Câmara, Arthur Lira, quando o Parlamento vacilava para punir o deputado Daniel Silveira, que ameaçara fisicamente ministros do STF. Por terem cargo vitalício, os ministros podem esperar que os ventos da política mudem. E têm paciência para isso. Se hoje não têm força institucional para reagir, amanhã o cenário pode ser outro. E quem não os ajudou em momentos de necessidade pode sofrer as consequências.

O STF seria fatalmente o inimigo a ser enfrentado por Bolsonaro, porque as ideias e os discursos vocalizados por ministros representavam a antítese fundamental a seu projeto populista autoritário, de monopólio da interpretação da vontade popular. Em 2015, ele afirmou: “Eu não falo o que o povo quer ouvir, eu sou o que o povo quer”. No governo, foi além: “Eu sou a Constituição”. O STF, na interpretação da Constituição, não diz ao povo o que fazer, quem ouvir; mas diz ao governo o que deve ou não pode fazer. E isso Bolsonaro não engolia.

As ações do então presidente foram julgadas politicamente pelo eleitor, que não o reelegeu. Mas o julgamento judicial se dará no tempo do Supremo e do Tribunal Superior Eleitoral. Bolsonaro já está inelegível por decisão do TSE. Muito provavelmente será denunciado por diversas de suas práticas enquanto presidente. E a condenação parece certa.

Em todas as crises institucionais que enfrentou ao longo da história tendo o Executivo como adversário, o Supremo saiu perdendo. Na última, durante a ditadura militar, a linha dura do regime rejeitava a possibilidade de um tribunal em Brasília julgar conforme a Constituição e não de acordo com os interesses da autodenominada “revolução”. Três de seus ministros foram cassados e o tribunal teve suprimida parte de suas competências.

Em 2018, os prognósticos não pareciam favoráveis ao STF. Então surgiu uma nova Corte para opor resistência ao projeto iliberal de Bolsonaro. Testemunhamos a história de uma instituição que se transformou, abafou personalismos, se reinventou para defender a Constituição. O Supremo foi provocado a julgar as ações ou omissões do governo e suas decisões passaram a ser lidas pelo Planalto e seus apoiadores como uma sabotagem artificial, baseada simplesmente num suposto e fantasioso plano de derrubada de Bolsonaro.

O STF, que estava acostumado a se sintonizar com uma maioria organizada e vocal da sociedade, deparou-se com uma nova realidade: um contingente expressivo da população, com Bolsonaro como representante, que rejeitava, muito mais do que suas decisões, sua razão de ser.

Nesse embate, o STF chegou armado de poderes e repleto de ferramentas jurídicas forjadas por uma jurisprudência construída ao longo de anos em suas mais diversificadas e amplas competências — desde o controle de constitucionalidade, passando por processos criminais até os recursos contra decisões de outras instâncias. E ampliou o seu poder de atuação na prática. Não dependeu de mudanças legislativas que lhe garantissem novos instrumentos ou redefinissem seus limites ou de outras instituições, como a Procuradoria-Geral da República. Em certas ocasiões, promoveu essa expansão na marra. O tribunal não se restringiu, nem sempre foi deferente aos outros Poderes, nem foi ortodoxo, quando lhe interessou.

Escolheu o que julgar, quando julgar e como julgar. Decidiu não decidir de forma estratégica. Decidiu decidir como entendesse mais adequado. Reinterpretou determinados conceitos conforme suas estratégias processuais e institucionais, mudou seus próprios entendimentos conforme a circunstância de momento, decidiu casos com um olho no Direito e outro na conjuntura política. No nome de quem estava sendo processado.

A conquista desse arsenal constitucional e poderio político se deu ao longo do tempo, com ministros exagerando na sua atuação individual. Em diversas ocasiões, a progressão era feita de forma desmedida, sem atentar para os alertas — internos, inclusive, nos votos vencidos — de que estrategicamente aquele passo poderia provocar uma reação mais forte e difícil depois de ser assimilado. Quando esse avanço era individual, o coletivo pouco fazia institucionalmente para contê-lo.

Ninguém parecia interessado em conter o poderio individual do colega porque isso diminuiria o seu próprio poder. Tornou-se um jogo de soma zero para a instituição. Quando a decisão era submetida ao colegiado, o Supremo até ratificava, em razão das circunstâncias políticas, institucionais, da diplomacia interna ou mesmo do cansaço.

Esse avanço do Supremo, a despeito das vitórias na ampliação do poder, expôs as fraquezas da Corte. O STF perdeu aliados importantes em diferentes frentes, foi se isolando progressivamente no locus político de Brasília, criticado pelos mais diversos espectros da opinião pública.

Na esquerda, por uma soma de decisões e comportamentos judiciais — como a manobra na pauta de julgamentos para não libertar Lula ou o engavetamento de investigações contra políticos de direita acusados de corrupção —, a Corte passou a ser vista como parcial e persecutória. No centro e também no Centrão, o avanço desmedido de investigações a partir da Operação Lava Jato, com a anuência da maioria dos ministros, deu munição ao discurso de que o tribunal estaria criminalizando a política.

Na direita, o Supremo perdia adesão quando avançava na efetivação de uma pauta liberal em torno de direitos fundamentais ou quando não revertia decisões do Parlamento nesse sentido. Em ambos os casos, era apontado como o responsável por essa agenda liberal — e nem sempre isso era verdadeiro. Não foi o Supremo, por exemplo, que estabeleceu cotas raciais nas universidades públicas ou autorizou pesquisas com células-tronco embrionárias.

Para o STF, essa narrativa de ser liberal soava positiva porque condizia com uma agenda de parte relevante da sociedade organizada e da mídia. Mas ela não é exata. As cotas foram estabelecidas pelas universidades e as pesquisas com células-tronco foram aprovadas pelo Congresso. O Supremo não derrubou essas políticas, foi isso que ocorreu. Ao contrário dessa ideia de ser absolutamente liberal, o Supremo tarda a enfrentar determinados temas, como demorou a julgar o caso de drogas, e revela-se conservador ou tímido em algumas pautas de igualdade de gênero.

Para a política, o STF estava abusando de seus poderes e precisava ser contido a fim de haver efetivamente um reequilíbrio entre os Poderes. As propostas de limitar a concessão de liminares monocráticas; reduzir atribuições da Corte; dar à política a última palavra sobre controle de constitucionalidade das leis; aumentar ou reduzir número de ministros; estipular tempo de mandato; e as ameaças de impeachment contra ministros, tudo isso era, em algum grau, parte dessa reação de insatisfação.

Essa resistência cada vez mais sensível ao STF não era algo isolado, apenas brasileiro. Em todos os países em que as cortes constitucionais expandiram seus poderes, pipocaram reações da sociedade e da política. Nos Estados Unidos, as ameaças contra os justices e os ataques ao sistema eleitoral aumentaram nos últimos anos. Ameaça em nível global exigia um discurso global. Vendo em perspectiva, salta aos olhos o fio que articulava as ações do TSE ao organizar encontros com embaixadores estrangeiros e convocar observadores internacionais.

Através das janelas do Supremo, o que se enxergava era um tribunal que as disputas internas haviam fragilizado, fragmentado, minado sua coesão para reagir a eventuais ataques da classe política. Nem o presidente do STF exercia uma liderança inconteste. Ministros reagiam individualmente à agenda de contenção do tribunal, cada um com sua visão de Supremo, cada um com seu diagnóstico sobre a conjuntura e riscos, cada um com sua agenda e modo de agir (ou de não agir).

Para fora, o que as imagens da TV Justiça passavam e o que a imprensa retratava mais amiúde eram os conflitos internos. O julgamento do mensalão, com os duelos de Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski, são a marca de uma Corte em que, em casos mais sensíveis, a política e a estratégia com frequência se sobrepõem ao direito. Ao noticiar as ações dos ministros, a imprensa não mais ressaltava suas visões do Direito: eles eram descritos pelas inclinações ideológicas expostas num ou noutro julgamento.

Embora reducionista e imprecisa, era essa a imagem que prevalecia aos olhos de um público leigo cada vez mais interessado no Judiciário, com vontade de entender o que se passava. Para essa audiência, os bate-bocas passam a sair com mais destaque do que os argumentos jurídicos e a visão do direito de cada um.

No tempo em que as sessões não eram transmitidas ao vivo nem podiam ser televisionadas, as discussões mais ásperas morriam no pouco espaço destinado ao Supremo nas páginas de jornais. O julgamento de Collor foi uma exceção, porque à época o presidente do tribunal, Sydney Sanches, autorizou a transmissão ao vivo para evitar que uma multidão se acotovelasse no tribunal para acompanhar os debates. A primeira vez que a TV Globo requisitou imagens de um julgamento do STF à TV Justiça foi em 2004, para transmitir a discussão entre os ministros Marco Aurélio Mello e Joaquim Barbosa. A partir daí, os embates, que não se limitavam a discussões jurídicas, se acumularam e expuseram as desavenças internas.

Mas nos últimos anos, o comportamento interno de alguns dos ministros, transmitidos pela TV Justiça ou viralizados nos memes de internet, era incompatível com a liturgia e reverência com que queriam ser tratados. E se os jornais nem sempre retratavam o tribunal em suas melhores condições, a máquina de notícias falsas e de destruição de reputações alimentava o ódio da sociedade contra ele.

A rede de fake news, que operou durante a campanha de Bolsonaro, foi detectada pela Corte em 2018, quando se proliferaram na internet informações evidentemente incorretas sobre decisões do tribunal, medidas administrativas e falas dos ministros. O Supremo não estava preparado para lidar com isso, não dispunha de estrutura para lidar com as redes sociais. Nem havia monitoramento das redes pela Comunicação do STF. Assim, não tinha condições de reagir à avalanche de mentiras interessadas em descredibilizar o tribunal e em promover a radicalização da sociedade contra o STF. O STF havia se transformado em alvo fácil — e tinha sua parcela de responsabilidade por isso. E foi nesse caldo de cultura que atracou Bolsonaro, um político que já durante a campanha ameaçava o Supremo.

O Congresso, que nas décadas anteriores ficara acuado pela sequência de escândalos de corrupção e pela cobertura crítica e massiva da imprensa, foi renovado. Sem a intermediação da mídia tradicional, deputados e senadores passaram a se comunicar diretamente com os eleitores, que por sua vez passaram a pressioná-los. O Parlamento reproduziu a polarização da sociedade. Já não havia espaço para meios termos, contemporizações. E uma parcela relevante dos parlamentares se elegeu com o discurso anti-establishment, anti-instituições e antipolítica.

Em seu isolamento, o Supremo teria de sobreviver aos ataques de Bolsonaro, enfrentar as ameaças permanentes do Legislativo e conviver com o sentimento desfavorável de parte da sociedade. Mas sua grande força para resistir aos ataques do governo bolsonarista estava justamente na existência de um inimigo em comum. Nem na ditadura militar houve coesão da Corte contra os atos institucionais que retiraram garantias e independência da magistratura, restringiram as competências do Supremo, suspenderam os habeas corpus e cassaram juízes pelo país e ministros do STF. O problema não era de um ou de outro. Agora estavam todos ameaçados, porque o tribunal era o alvo.

A segunda ameaça, a máquina de mentiras, também não poupava ministros. Da discreta Rosa Weber até os ministros mais vocais como Gilmar Mendes, os ataques na internet atingiam a todos. E as investigações indicavam que não se restringiam a ameaças verbais. Planos de ações violentas foram detectados. A Polícia Federal chegou a investigar e prender uma pessoa que perseguia e intimidava familiares de um dos integrantes do tribunal. O STF precisava se fortalecer para reprimir essas ações.

O terceiro inimigo e fator de unificação do tribunal foi a pandemia da Covid-19. A doença que fez mais de 700 mil baixas, contaminou os ministros e também matou amigos e parentes de alguns deles, precisava ser combatida. E se o governo se negava a fazê-lo, o Supremo assumiu a missão para si e usou suas ferramentas jurídicas para isso. Nunca decisões tão polêmicas e sensíveis foram julgadas com tanta folga e coesão. Diante desse conjunto de armadilhas, o tribunal agiu — criou o inquérito para investigar fake news, conseguiu desmobilizar a ameaça da comissão parlamentar de inquérito, reaproximou-se da elite política que tinha sido combalida pela Lava Jato, ampliou as investigações contra as ameaças golpistas do governo, driblou o aparelhamento que Bolsonaro promoveu na cúpula da PGR e da Polícia Federal e aproveitou os erros do governo para lhe impor derrotas importantes.

Foram os propósitos antidemocráticos de Bolsonaro que arrefeceram o movimento de contenção ao Supremo. Encampadas por bolsonaristas, as propostas de mudanças no tribunal foram paralisadas no Congresso; a ameaça latente de impeachment de ministros, que pairava como um zumbido no Senado, também foi escanteada diante dos pedidos sem fundamento feitos por Bolsonaro contra Alexandre de Moraes.

Mesmo as severas críticas acadêmicas ao tribunal e suas decisões fizeram uma pausa ou diminuíram de intensidade. Não seria conveniente esgarçar as fragilidades do STF em momento tão delicado para sua sobrevivência. O Supremo, em meio à guerra, reconquistou alguns dos seus aliados, como a mídia tradicional. E tratou seus vícios, corrigiu rumos, aumentou sua colegialidade, silenciou os ataques internos, foi estratégico em sua agenda de julgamentos e avançou sem grandes divergências no rumo que lhe garantiria chegar intacto ao final de 2022. Quem entrou no tribunal pelas mãos de Bolsonaro e se dispôs a enfraquecer esse movimento de resistência foi também rapidamente isolado pela maioria.

8 de janeiro

O ataque golpista de 8 de janeiro solidificou o sentimento que Bolsonaro e suas redes alimentaram durante os quatro anos de seu mandato. Mas a insólita tentativa de golpe não foi uma prova de força do bolsonarismo: ela consumou a derrota de Bolsonaro. O tribunal invadido e depredado será o mesmo que condenará os responsáveis por fomentar o ódio contra as instituições. O mesmo que era criticado legitimamente por certos excessos ganhou um voto de confiança das instituições para acelerar suas ações contra a turba antidemocrática.

Alexandre de Moraes, perseguido por Bolsonaro, será o ministro que comandará as ações contra o ex-presidente, o qual, em seu jogo de tudo ou nada, é o responsável por esse cenário. Sem a faixa e depois dos ataques de 8 de janeiro, perdeu muito do que lhe restava e ainda reergueu o Poder que tentou solapar.

Mas o que o Supremo aprendeu com a vitória? A ameaça bolsonarista se dissipou e os riscos de erosão democrática diminuíram. A maioria do eleitorado elegeu um presidente mais à esquerda e afinado com uma pauta de efetivação de direitos fundamentais. O tribunal se realinhou com a elite política e com o mainstream da mídia.

Contudo, a derrota de Bolsonaro não anula todas as ressalvas que eram feitas ao tribunal, suas decisões e o comportamento dos ministros. Esses problemas, se ficaram em segundo plano nesse período, voltarão a ser foco dos observadores da Corte.

Como se equilibrará o tribunal sem aqueles fatores que promoveram sua união nos anos Bolsonaro? A Corte já não enfrenta um inimigo em comum, a pandemia da Covid-19 foi superada e a máquina de fake news está na mira do Judiciário e do Congresso. Sem esses fatores de coesão, o tribunal voltará a ser um somatório de individualidades? Vão reaparecer os conflitos internos, que fulminam a credibilidade da Corte? Em que nível? As agendas individuais voltarão a se sobrepor a uma visão mais institucional?

Algumas mudanças foram promovidas pela gestão Rosa Weber — elas eram discutidas havia várias presidências — na tentativa de responder a essas perguntas. O regimento do tribunal foi alterado para aprofundar a colegialidade das decisões e reduzir o poder individual dos ministros. Se serão suficientes e respeitadas essas novas regras, é questão de tempo e esforço coletivo. Mas ainda há muito espaço para as individualidades e ministros sempre dispostos a exercê-las para além do recomendável.

O tribunal não enfrentou ainda outros problemas que há anos concorrem para desafiar a legitimidade de seus julgados: o déficit de justificação de várias de suas decisões. Não serão decisões puramente extensas e recheadas de doutrina que convencerão a sociedade do acerto de um voto. Não serão minutas jogadas no plenário virtual, aprovadas por meros cliques de computadores dos ministros, que levarão a opinião pública a compreender e digerir tranquilamente uma decisão, mesmo sem concordar com ela. A assinatura de um ministro do Supremo não basta. O STF precisa interpretar a Constituição e dizer, com clareza, por que chegou àquelas conclusões. Só assim contornará as suspeitas de que alguns dos julgamentos mais controversos são meros atos de vontade ou fundados essencialmente em elementos de conjuntura.

Até hoje as idas e vindas do tribunal sobre a possibilidade de execução da pena de condenados em duas instâncias não são bem digeridas pela sociedade. Assim como a virada de casaca de alguns ministros em casos da Lava Jato.

As investigações relativas a Bolsonaro – nas diferentes frentes de ação – e as condenações dos envolvidos nos ataques do dia 8 também levantam sérios questionamentos sobre os limites da atuação do tribunal e sua limitação ao Direito. Novamente: ressalvas feitas mesmo entre aqueles que estiveram na defesa da institucionalidade do Supremo nos últimos quatro anos.

Por sua natureza, o tribunal deve ser elemento de pacificação e solução de conflitos. E a única forma de fazer cumprir suas decisões é pela sua legitimidade. O STF não dá mostras de que vá repensar sua relação com a opinião pública a fim de resguardar este ativo fundamental: a legitimidade. Se depois dos ataques de 8 de janeiro, os ministros concordaram que apenas a presidente deveria dar entrevistas para expor a posição institucional do STF, passados alguns dias já havia opiniões de ministros estampadas em diversos jornais sobre os mais diferentes temas, inclusive sobre processos a serem julgados. Cobrar do Supremo o mesmo comportamento de outros tribunais do mundo, como a Suprema Corte americana, em que ministros raramente concedem entrevistas, é irreal e nega nossa própria realidade.

O STF exerce papel político relevante também no debate público, com frequência a imprensa lhe pede para esclarecer e comentar assuntos relevantes para a sociedade. Um tribunal que se abriu para as transmissões ao vivo de seus julgamentos, sob aplausos da opinião pública, não será discreto como são outras cortes ao redor do mundo nem se fechará para o mundo político e para a sociedade organizada. Mas qual a medida dessa exposição? E quais os limites éticos? Porque o excesso de transparência dos julgamentos está contraditoriamente combinado à opacidade das agendas políticas do tribunal e seus integrantes. De nada adianta assistir às sessões se houver dúvidas sobre os movimentos de bastidores. Novamente, nesse quesito, cada um no tribunal tem a sua medida, a sua percepção e a sua agenda. Quem paga a conta por eventuais abusos é a instituição.

Na relação com os Poderes, o tribunal tampouco se livrou das ressalvas feitas nos últimos anos. O Congresso mantém seu diagnóstico de que o STF se imiscui indevidamente em temas que seriam de competência da política. Ou que algumas decisões são descoladas da realidade ou negligenciam as consequências. Também continuam a ser censuradas as decisões que interferem em disputas consideradas interna corporis — embates em torno do regimento interno ou do funcionamento do próprio Congresso.

A legislatura eleita em 2022 é ainda mais reticente ao tribunal do que aquela que surfou a primeira onda bolsonarista. A de 2026 promete ser mais vocal. O clima de pacificação que uniu os Três Poderes depois da tentativa de golpe, testemunhado na reinstalação do Supremo no dia 1º de fevereiro de 2023, vai se manter razoavelmente em tempos de calmaria? Não é o que parece.

É fato que por parte dos congressistas existe uma incompreensão, às vezes oportunista, sobre a missão do STF, o que fomenta algumas críticas à Corte. É verdadeiro o argumento de que o Legislativo se omite na tarefa de dar concretude a políticas que garantam direitos fundamentais, especialmente de minorias. É inquestionável que parcela considerável das decisões que abrem controvérsias com o Congresso atendeu justamente a pedidos feitos por parlamentares ou partidos políticos. Mas os pecados do Legislativo não perdoam os erros do Supremo. É evidente que o tribunal não pode deixar de exercer suas atribuições, mesmo que o mérito e conveniência das decisões sejam questionáveis. Mas ele foi acusado de agir de forma despótica, arrogante, de fechar-se ao diálogo, de postar-se acima dos demais Poderes.

Mesmo integrantes do Supremo, que defendem as decisões do tribunal, admitem que é preciso um grau de humildade institucional. O STF não pode correr o risco de mais uma vez se ver isolado institucionalmente. Ele venceu a batalha pela democracia. Foi tirar o capital de que precisava para se manter vivo de onde menos se podia esperar: da inédita unidade interna. O mais fraco dos Três Poderes (não é eleito, não tem armas e nem o Tesouro para comandar o país) pela primeira vez suportou e derrotou os ataques de um governo autocrata.

As decisões durante a pandemia da Covid-19 salvaram vidas e evitaram um desastre ainda maior. A sua jurisprudência fez frente a ameaças reais contra liberdades e garantias fundamentais. O Supremo se manteve de pé e conteve a corrosão democrática que estava em curso. O tribunal superou Jair Bolsonaro e ganhou uma oportunidade valiosa para aperfeiçoar seus procedimentos e reconstruir sua autoridade para seguir cumprindo a sua missão de guardar a Constituição e a democracia. Os vencedores escrevem a história — o STF terá um desafio distinto: escrever a história de seu futuro. Para tanto, será preciso olhar para o passado.

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