Resolução do CFM que limita aborto legal extrapola competência do órgão e ameaça direito

Crédito: Tomaz Silva/Agência Brasil

A permissão para que uma gravidez seja interrompida em casos de estupro e de risco de vida para mulher foi inserida no Código Penal Brasileiro em 1940. Ainda assim, mesmo que não sujeito a punição nesses casos, o aborto legal está sob ameaça no Brasil, especialmente as intervenções a partir de 22 semanas de gestação. O embate está posto desde o dia 3 de abril, após a publicação da Resolução 2.378 do Conselho Federal de Medicina (CFM) no Diário Oficial da União (DOU).

A normativa proíbe os médicos de realizarem a assistolia fetal “quando houver probabilidade de sobrevida do feto em idade gestacional acima de 22 semanas nos casos de aborto previsto em lei, cujo feto seja oriundo de um estupro”. A premissa, segundo especialistas, impede o acesso à lei, além de expor as equipes médicas e pacientes.

A assistolia fetal é reconhecida e utilizada internacionalmente, recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para os casos de aborto legal acima de 20 semanas. O procedimento prevê a injeção de cloreto de potássio para interromper os batimentos cardíacos do feto, que depois é retirado da barriga da mulher com a garantia de que não haja sinais vitais.

Desde a publicação, o texto da resolução é alvo de críticas e repúdio por parte de profissionais e entidades representativas de classe. A disputa também tem se estabelecido na esfera judicial. Na última terça-feira (30/4), o Ministério Público Federal (MPF) apresentou recurso contra uma decisão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4) que restabeleceu os efeitos da normativa.

A norma foi restabelecida no dia anterior, após ter sido suspensa por força de uma liminar concedida pela Justiça Federal. O clima nos bastidores da classe é de tensão e receio, sobretudo pelas ameaças de perda de licença do exercício da profissão em caso de manutenção do procedimento. A cruzada contra profissionais que realizam o aborto legal no Brasil não é uma novidade, e vem sendo acentuada nos últimos anos.

Um bom exemplo é a investida contra médicas que trabalhavam no Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha, na zona norte de São Paulo, considerado uma referência em casos de aborto previstos por lei. Apesar de terem realizado procedimentos com autorização judicial, as profissionais foram denunciadas ao Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), acusadas de negligência e tortura. Elas podem ter os registros cassados. A interdição cautelar de duas profissionais chegou a ser aprovada por unanimidade pelo Cremesp. Outros casos ainda serão analisados.

O caso ganhou repercussão nesta semana após ser divulgado pela Folha. Inicialmente o Cremesp soltou uma nota dizendo que “está apurando os fatos que se encontram em sigilo nos termos da lei”, mas afirmou lamentar que “informações que não correspondem à realidade sejam veiculadas na sociedade.” Em seguida, divulgou outro comunicado afirmando que “respeita o direito da mulher ao aborto legal”, mas que “qualquer denúncia que envolva danos a fetos viáveis deve ser objeto de rigorosa investigação”.

O serviço de aborto legal no Hospital Maternidade Vila Nova Cachoeirinha foi suspenso no final do ano passado pela prefeitura de São Paulo, sob o argumento de denúncias de irregularidades nos procedimentos. No entanto, informação obtida pela Agência Pública via Lei de Acesso à Informação (LAI), divulgada em 1/05, mostrou não ter sido registrada junto à secretaria municipal de Saúde nenhuma denúncia de aborto ilegal na unidade. Logo, a intervenção ocorreu sem que houvesse motivo real para as suspeitas.

Crianças e adolescentes são as mais afetadas por proibição da assistolia fetal

“O Conselho deveria estar preocupado em garantir à população a boa prática da medicina e que os princípios éticos fossem cumpridos. Entretanto, quanto solta uma resolução do tipo normativa, que orienta o que o médico pode ou não pode fazer do ponto de vista da prática, dos aspectos técnicos, ele está invadindo um espaço que não é o dele”, expõe Ana Maria Costa, diretora do Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (Cebes).

Costa explica que a limitação pretendida pelo CFM impacta principalmente a garantia do direito a crianças e adolescentes (10-14 anos), mulheres pobres, pretas e moradoras da zona rural, perfis que representam cerca de 50% dos procedimentos tardios realizados nas unidades de saúde.

“A lei não impõe limite de tempo. Esse limite vai depender da oportunidade das mulheres descobrirem a gravidez. Se elas descobrem precocemente, certamente vão fazer precocemente. A questão é que quando essas mulheres descobrem a gravidez fruto da violência, têm dificuldade de acessar o serviço. Até que tudo se processe e ela chegue a acessar o procedimento, normalmente já se passaram 18, 20 semanas. Quando se limita a idade gestacional você está, de novo, sujeitando as mulheres à violência e retirando direitos”, chama atenção Costa.

O Cebes foi uma das entidades signatárias de um pedido de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) no Supremo Tribunal Federal (STF) em relação à resolução do CFM, apresentada no dia 5 de abril. No documento, as entidades, dentre as quais também se destacam a Sociedade Brasileira de Bioética (SBB), a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), a RedeUnida e o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), argumentaram que, menos de 48h após a publicação da resolução, o veto ao aborto legal já afetava o atendimento a meninas estupradas.

A esse pedido somou-se uma ação civil pública ajuizada pelo MPF do dia 8/4. Na ação, o MPF pedia a nulidade da resolução do órgão que, “a pretexto de regulamentar ato médico, inviabilizava a realização de aborto em meninas e mulheres vítimas de violência sexual, em casos de estágio avançado de gravidez”.

Resolução que proíbe assistolia fetal confunde conceitos médicos 

Coordenador da Rede Médicos pelo Direito de Decidir (Global Doctors for Choices) no Brasil, o ginecologista e obstetra Cristião Rosas avalia que a resolução do CFM apresenta inconsistências que deveriam apontar para a anulação da normativa.

As ilegalidades, segundo lista, iniciam no embaralhamento dos conceitos básicos de aborto espontâneo e aborto induzido, passando pelo uso equivocado da justificativa dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos, avançando, por fim, para o impedimento de uma conduta ética dos profissionais que realizam o aborto legal previsto pelo Código Penal brasileiro.

“A normativa usa o raciocínio de aborto espontâneo, que é aquele que estabelece limite e viabilidade fetal, conforme conceituado pela Organização Mundial da Saúde [OMS] no Código Internacional de Doenças [CID]. O que se esquece é que, quando falamos em aborto legal, falamos em aborto induzido, que é também um conceito médico. E o conceito médico diz que é a interrupção artificial da gravidez. É a extração do feto ou de um embrião de uma gestação em desenvolvimento, independente da duração da gravidez, intencionalmente, por meios medicamentosos ou cirúrgicos, e que não tenha a intenção de resultado nascido vivo”, esclarece Rosas.

“No mundo inteiro, aborto legal não é parto prematuro, não é perda gestacional espontânea. Aborto é terminar com a gestação com o intuito de morte fetal”, pondera.

O médico também critica as considerações elencadas pela Resolução. Das 12 sequenciadas, nenhuma tem como assunto central a assistolia fetal, procedimento que proíbe. Nem aborda seus usos, riscos e outras implicações.

“Os considerandos partem de um conceito também equivocado dos direitos humanos. Toma casos clínicos levados às cortes internacionais por descumprimento dos direitos humanos nos países em relação aos direitos das mulheres e das meninas que estavam grávidas e impedidas de acessarem o direito ao aborto legal. Aqueles direitos que eles tratam não são direitos do feto, e sim das mulheres que tem o permissivo legal para interromper a gravidez. A própria Corte Interamericana de Direitos já esclareceu que essa proteção à vida não ultrapassa a proteção à vida da mulher”, diz Rosas.

“É importante destacar que qualquer procedimento ou ato que provoque a morte do feto no útero é aborto. Não é prematuro, não é homicídio, não é infanticídio. A Resolução proíbe um procedimento médico reconhecido e aprovado cientificamente, utilizado há pelo menos 30 anos, seguro, que facilita o procedimento, dá tranquilidade para a equipe trabalhar e garante o cuidado com a mulher.”

Os limites da competência

Procurado pela reportagem, o Conselho Federal de Medicina não se manifestou sobre as críticas.

JOTA também fez contato com Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo). A entidade chegou a publicar uma nota oficial contrária a resolução no dia 5/4. O conteúdo, porém, foi retirado do site da instituição posteriormente.

Questionada pela reportagem, a assessoria de imprensa informou que a decisão ocorreu por orientação da presidente, segundo a qual o assunto seria tratado diretamente com algumas fontes da Febrasgo. Apesar do pedido, nenhum porta-voz foi indicado para esta reportagem.

CFM extrapola competência ao restringir acesso a uma lei ordinária

Parte dos embates jurídicos estabelecidos e dos argumentos contrários à resolução do CFM tem como elementos centrais a competência e legitimidade do Conselho Federal para tal proibição. Pode uma norma infralegal imposta por um conselho de classe limitar ou impedir um direito previsto no Código Penal?

Para Pedro Henrique Duarte, advogado criminalista, especialista em Direito Público e Responsabilidade Médica, a resolução, além de extrapolar as próprias competências previstas pela Lei 3.268, em vigor no Brasil desde 1957 — dispõe sobre a atuação do Conselho Federal e dos Conselhos Regionais de Medicina —, o CFM assume postura de “evidente usurpação”, já que a norma “contrapõe o Código Penal, que é uma lei ordinária, hierarquicamente superior à resolução”.

Duarte observa ainda que o Brasil adota lógica semelhante à Pirâmide de Hans Kelsen, sob a qual as normas de menor grau obedecem às de maior grau. Neste caso, uma resolução do tipo está hierarquicamente abaixo da Constituição Federal, dos Códigos Penal e Civil, por exemplo.

“Em decorrência dessa regra, que é apresentada ao estudante de Direito no primeiro semestre de faculdade, é possível compreender que as resoluções não podem, e nem devem, sobrepor-se às leis ordinárias, como é o caso do Código Penal. Ainda que o CFM se arvore a ampliar inadvertidamente a sua competência, sob o pretexto de estar cuidando da ética médica, a regulação da conduta vedada na mencionada resolução não é de sua competência, cabendo ao Congresso tal mister”, enfatiza Duarte.

Entendimento semelhante é compartilhado por Marinella Afonso de Almeida, advogada especialista em Direito Médico. “Atos administrativos não podem restringir direitos previstos na lei, tampouco criar proibição não prevista em lei, sob pena de invasão de competência legislativa e abuso do poder regulamentador. A lei que rege o CFM, assim como a lei do ato médico, não outorgaram ao CFM a competência para criar restrição ao aborto em caso de estupro, de modo que o Conselho não tem competência para criar, por meio de resolução, proibição não prevista em lei”.

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