As emendas parlamentares e o papel dos tribunais de contas

Crédito: Divulgação/TCE

A rápida expansão das emendas parlamentares no orçamento federal deixou de ser um tema restrito a especialistas em finanças públicas para se tornar questão central da gestão pública no Brasil. Em poucos anos, passamos de um modelo de orçamento autorizativo para um cenário de forte impositividade e crescimento exponencial dos valores envolvidos.

Nesse âmbito, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio da ADPF 854 e de outras ações, foi chamado a julgar distorções graves, como o “orçamento secreto” e a opacidade das transferências especiais, estabelecendo parâmetros de transparência, rastreabilidade e controle que hoje vinculam União, Estados, Distrito Federal e Municípios.

É nesse contexto, de profunda reconfiguração do ciclo orçamentário e de intensa atuação do STF, que se insere a Nota Técnica sobre a fiscalização dos recursos oriundos de emendas parlamentares, elaborada pela Comissão de Estudos do Controle Externo e Tribunais de Contas do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo (IBDA).[3] Tive a honra de atuar como relator desse trabalho, o que me permite, neste breve artigo, destacar alguns de seus eixos principais.

A posição do STF: transparência e simetria federativa

A Nota Técnica parte de um diagnóstico duro, mas inescapável. Nos últimos cinco anos, cerca de R$ 89,9 bilhões foram transferidos por meio de emendas parlamentares, sendo mais de 57% apenas nos exercícios de 2023 e 2024. Desse montante, aproximadamente três quartos correspondem a emendas individuais, boa parte na modalidade transferência especial – justamente aquelas que dispensam convênio e ingressam diretamente no orçamento do ente beneficiário, dando origem às denominadas “emendas Pix”.

Diante desse cenário, o STF passou a exigir que a impositividade das emendas seja compatibilizada com princípios constitucionais orçamentários e com a transparência ativa. Ao enfrentar o “orçamento secreto” e o uso desvirtuado das emendas parlamentares, a Corte declarou inconstitucional sua utilização opaca e desvinculada de suas finalidades.[4] [5]

Um passo fundamental foi dado quando o STF estendeu aos Estados, ao DF e aos Municípios o dever de replicar, por simetria, o “modelo federal” de transparência e rastreabilidade, com eficácia já a partir dos orçamentos de 2026. A execução das emendas subnacionais fica condicionada à comprovação, perante os Tribunais de Contas competentes, de que foram adotadas medidas concretas de adequação normativa, procedimental e tecnológica, em linha com o art. 163-A da Constituição.[6] [7] [8]

O desafio metodológico dos Tribunais de Contas

Nota Técnica da Comissão do IBDA[9] estabelece um roteiro de atuação para os Tribunais de Contas. Em vez de tratar as emendas parlamentares apenas como um problema político, o texto as reconstrói como objeto estruturado de fiscalização, articulando cinco eixos principais: (i) marco jurídico; (ii) competência dos Tribunais de Contas; (iii) formas de fiscalização; (iv) cooperação interinstitucional; e (v) capacitação e transparência ativa.

No plano das competências, a Nota reconhece, por um lado, a competência exclusiva do TCU para o julgamento das prestações de contas relativas às emendas federais, tal como estabelecido pelo próprio STF; por outro lado, afirma a competência dos Tribunais de Contas subnacionais para processar fiscalizações, denúncias e representações. Em relação às emendas estaduais e municipais, a competência dos Tribunais de Contas subnacionais é integral.[10] [11] [12]

A Nota propõe, assim, que os Tribunais passem a tratar a fiscalização de emendas parlamentares como prioridade em seus planos de auditoria, ressaltando o potencial de utilização conjunta de auditorias de conformidade, financeiras e operacionais para a fiscalização desses recursos.

Cooperação, normatização e papel orientador

Outro eixo fundamental do documento é a aposta na cooperação entre órgãos de controle. Por isso, a Nota ecoa recomendações já formuladas em notas conjuntas de entidades do Sistema Tribunais de Contas, sugerindo acordos de cooperação e auditorias cooperativas.[13] [14] [15]

Do ponto de vista normativo, o texto enfatiza a premente necessidade de cada Tribunal de Contas editar regulamentos próprios sobre fiscalização de emendas, definindo, por exemplo, quais dados mínimos devem ser apresentados pelos jurisdicionados.

Outrossim, o papel orientador dos Tribunais não pode ser negligenciado. A Nota recomenda que as Cortes invistam em capacitação interna e externa, para difundir o novo regime das emendas junto a gestores públicos, parlamentares e sociedade civil, isso tudo em tempos nos quais o debate público sobre as emendas é marcado por aspectos negativos, como o chamado “orçamento secreto”.

Uma oportunidade, não apenas uma obrigação

Na qualidade de relator da Nota Técnica do IBDA, entendo que a maior virtude do texto se encontra na sistematização de diferentes contribuições das Cortes de Contas brasileiras, oferecendo um referencial comum de atuação à comunidade do controle externo.

A exigência que se coloca para 2026 – execução de emendas condicionada à comprovação, perante os Tribunais de Contas, de aderência ao modelo federal de transparência – não é apenas uma obrigação. É, sobretudo, uma oportunidade para que as Cortes de Contas reafirmem seu papel de protagonismo enquanto instituições, fiscalizando a aplicação das emendas e propulsionando o exercício do controle social, a partir da obtenção de informação qualificada.

Aproveitar essa oportunidade e concretizá-la em uma agenda de fiscalização propiciará que as emendas parlamentares deixem de ser sinônimos de escândalos periódicos e passem a constituir exemplo de como os Tribunais de Contas podem zelar pela boa aplicação desses vultosos recursos em benefício da sociedade.


[1] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 854/DF. Rel. Min. Flávio Dino. Decisão monocrática. Brasília, DF, 23 out. 2025a. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/ 2025/10/F6C5FAE5E3835D_emendas.pdf. Acesso em: 2 dez. 2025.

[2] LEITE, Thiago de Paula. Modelo federal de transparência nas emendas parlamentares. Estratégia Carreira Jurídica, 29 out. 2025. Disponível em: https://cj.estrategia.com/portal/modelo-federal- transparencia-emendas-parlamentares. Acesso em: 2 dez. 2025.

[3] IBDA – INSTITUTO BRASILEIRO DE DIREITO ADMINISTRATIVO. Nota Técnica sobre fiscalização dos recursos oriundos de emendas parlamentares. Comissão de Estudos do Controle Externo e Tribunais de Contas. São Paulo, 2025. Disponível em: https://ibda.com.br/wp-content/uploads/2025/12/Minuta-nota-tecnica-IBDA.pdf.

[4] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ações diretas de inconstitucionalidade sobre o “orçamento secreto” (RP 9). Brasília, DF, 2022.

[5] Vide Nota 1

[6] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Emendas parlamentares: estados e municípios devem adotar modelo federal de transparência. Notícias STF, Brasília, DF, 23 out. 2025. Disponível em: https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/emendas-parlamentares-estados-e-municipios-devem-adotar-modelo-federal-de-transparencia. Acesso em: 8 dez. 2025.

[7] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 8 dez. 2025.

[8] BRASIL. Lei complementar nº 210, de 25 de novembro de 2024. Dispõe sobre a proposição e a execução de emendas parlamentares na lei orçamentária anual e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 26 nov. 2024. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp210.htm. Acesso em: 8 dez. 2025.

[9] Vide Nota 3

[10] BRASIL. Tribunal de Contas da União. Tribunais de contas locais devem fiscalizar a aplicação de transferências especiais. Brasília, DF: TCU, 22 mar. 2023. Disponível em: https://portal.tcu.gov.br/imprensa/noticias/tribunais-de-contas-locais-devem-fiscalizar-a-aplicacao-de-transferencias-especiais.htm. Acesso em: 8 dez. 2025.

[11] PEREIRA, Cláudia Fernanda de Oliveira. A competência dos entes federados para a fiscalização das “emendas Pix”. Atricon, Brasília, DF, 30 ago. 2024. Disponível em: <https://atricon.org.br/a-competencia-dos-entes-federados-para-a-fiscalizacao-das-emendas-pix/\>. Acesso em: 8 dez. 2025.

[12] Vide Nota 1

[13] ATRICON; IRB; CNPTC; ABRACOM; AUDICON; AMPCON; CNPGC. Nota Recomendatória Conjunta nº 01/2025: fiscalização da execução dos recursos advindos de emendas parlamentares. Brasília, 2025. Disponível em: https://www.atricon.org.br/…/ATRICON-IRB-ABRACOM-CNPTC-AUDICON-AMPCON-E-CNPGC-Fiscalizacao-da-execucao-dos-recursos-advindos-de-emendas-parlamentares.-1.pdf. Acesso em: 1 dez. 2025.

[14] ATRICON; IRB; CNPTC; ABRACOM; AUDICON. Nota recomendatória conjunta n. 02/2025: recomendação aos Tribunais de Contas brasileiros quanto à atuação na fiscalização da execução de recursos provenientes de emendas parlamentares federais. Brasília, 8 abr. 2025. Disponível em: https://www.cnptcbr.org/protocolo-de-recomendacao/nota-recomendatoria-conjunta-02-2025. Acesso em: 7 dez. 2025.

[15] ATRICON; AUDICON; AUDICON. Nota técnica conjunta/2018: análise do Projeto de Lei n. 51/2018, que altera a Lei Orgânica do Tribunal de Contas do Estado do Ceará, com destaque para vícios formais e materiais decorrentes de emendas parlamentares e recomendação de veto parcial. Brasília, 26 dez. 2018. Disponível em: https://www.atricon.org.br/wp-content/uploads/2017/03/Nota-Tecnica-04-2018.pdf. Acesso em: 7 dez. 2025.

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