Proposta da ANP para o gás de cozinha é temerosa, alerta Sindigás

Crédito: Sindigás/Divulgação

Presente em todos os municípios brasileiros e em 91% dos lares, o Gás Liquefeito de Petróleo (GLP), o popular gás de cozinha, é um dos insumos energéticos mais capilares do país. Chega onde outros, como água, saneamento ou até mesmo energia elétrica, não chegam de forma eficiente. Apesar dessa importância, o setor vive um momento de atenção com a Análise de Impacto Regulatório (AIR) conduzida pela Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).

A agência propõe mudanças nas regras de compra e venda dos botijões, o que tem levantado preocupações quanto à segurança e aos riscos de acidentes. O texto indica, por exemplo, que qualquer empresa possa vir a encher botijões de diferentes marcas e autoriza o enchimento fracionado em pequenas centrais de abastecimento, inclusive em áreas urbanas. Na prática, isso significa que qualquer distribuidora poderia comercializar botijões de outras marcas mediante um sistema de rastreamento que ainda não existe no mercado, e que não funcionaria para mais de 80 milhões de botijões fabricados antes de 2005, sem número de série.

Na visão do Sindicato Nacional das Empresas Distribuidoras de Gás Liquefeito de Petróleo (Sindigás), a perda da unicidade da marca eliminaria o principal mecanismo de responsabilização, dificultando a fiscalização e desestimulando investimentos na requalificação e produção de novos botijões. “As consequências podem ser desastrosas, expondo a população a fraudes, insegurança e acidentes”, explica Sergio Bandeira de Mello, presidente do Sindigás.

Um sistema reconhecido internacionalmente

O Sindigás defende a atual regulação brasileira, reconhecida internacionalmente como referência ao estabelecer incentivos econômicos e técnicos para manutenção, requalificação e assistência sobre o parque de botijões.

Hoje, cada botijão tem a marca da distribuidora gravada em alto-relevo, o que identifica a empresa responsável e cria responsabilidade civil e criminal. O enchimento ocorre em grandes plantas industriais, com rigor técnico e segurança, gerando ganhos de escala e rastreabilidade.

As distribuidoras só podem envasar e comercializar GLP em botijões da própria marca, o que assegura controle e fiscalização efetiva. A proposta da ANP, no entanto, pode comprometer uma cadeia produtiva que emprega 330 mil pessoas e garante, com segurança e pontualidade, a entrega de 13 botijões de gás por segundo em todo o país.

A solidez desse modelo, segundo o setor, é o que garante o abastecimento contínuo e a confiança do consumidor. “Respeitamos e apoiamos o papel do agente regulador de propor novas regras e olhar o mercado, sugerindo melhorias. Porém, a proposta de mudança regulatória do GLP não calcula os impactos econômicos e sociais da medida. Não quantifica, por exemplo, os custos adicionais que haveria com este sistema de rastreamento, nem com a necessidade de maior equipe e infraestrutura de fiscalização”, afirma Bandeira de Mello.

Pesquisa aponta que nove em cada dez brasileiros veem a marca no botijão como garantia de segurança

Uma pesquisa do Instituto Locomotiva, feita com 1.500 brasileiros em todas as regiões do país entre 5 e 9 de junho de 2025, confirma que a população rejeita as mudanças propostas e teme pela segurança. Os resultados são claros:

  • 93% da população (cerca de 158 milhões de brasileiros maiores de 18 anos) temem comprar gás sem a garantia da marca conhecida;
  • 97% acreditam que a marca no botijão é fundamental para garantir a qualidade do gás;
  • 94% consideram importante ter o nome da empresa que encheu o botijão gravado em alto-relevo;
  • 83% defendem a regra atual de que só a empresa com marca gravada pode encher o botijão, para que seja fiscalizada e responsabilizada em caso de acidentes.

“A população sabe que um botijão mal-conservado pode colocar vidas em risco. Sem a marca gravada, fica difícil saber a procedência e quem se responsabiliza por ele. Além disso, a chance de adulteração ou de receber menos gás do que o comprado é muito grande. A pesquisa mostrou que o brasileiro valoriza políticas públicas que ampliem o acesso ao gás, sim, mas sem abrir mão da segurança”, explica Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.

Os dados reforçam o que o setor vem alertando: o modelo atual combina eficiência econômica com segurança, em um produto essencial e inflamável, cuja manipulação requer rigor técnico.

Hoje, o enchimento dos botijões é feito em grandes bases industriais, com estrutura adequada e equipes de emergência. Improvisar esse processo, segundo o Sindigás, seria inseguro e, no fim, até mais caro.

Investimento e rastreabilidade

A obrigatoriedade da marca em alto-relevo no vasilhame, regra que a ANP propõe revogar, garante a identificação da distribuidora e estimula a manutenção e a requalificação dos botijões.

Esse cuidado com a rastreabilidade ganha ainda mais relevância diante da expansão esperada com o programa Gás do Povo, recém-lançado pelo Governo Federal. O programa deve demandar um adicional de 25 a 30 milhões de cargas de GLP vendidas por ano, representando um aporte das distribuidoras de cerca de R$ 2,5 bilhões em novos cilindros — entre cinco e dez milhões de recipientes.

Quando a ANP propõe permitir que qualquer empresa use o botijão de outra, há um desestímulo imediato ao investimento. “O grande estímulo de ter a marca estampada em alto-relevo no botijão é justamente o incentivo econômico: eu invisto na frota, seja em manutenção ou na compra de novos cilindros, porque tenho a segurança de que cada unidade retorna para mim. Se, ao contrário, qualquer pessoa puder utilizar o meu botijão, deixa de fazer sentido ampliar esse investimento. Quando levamos essa discussão para o campo regulatório, a preocupação é ainda maior”, completa Bandeira de Mello.

Risco de fraude e atuação criminosa

Outro ponto sensível é garantir que o consumidor receba exatamente o que pagou. Sem o peso padrão de 13 quilos, pré-medido e lacrado, não há como assegurar a medida precisa. Em vez de aumentar a concorrência saudável, as mudanças podem abrir brecha para oportunismo, fraude e até atuação criminosa, trazendo para o mercado de GLP problemas que já atingem outros setores, como adulteração e precarização, e dificultando ainda mais a fiscalização.

“Esse alerta também vem da própria população, que teme que o gás vire moeda de troca em regiões onde o Estado é ausente e falta capacidade de fiscalização”, reforça Bandeira de Mello. Ele cita exemplos preocupantes: no Paraguai, estima-se que 80% do parque de botijões esteja com prazo de requalificação vencido; no México, há registros de roubos e envases com desvio de quantidade.

Competitividade com segurança

Para o Sindigás, o debate sobre a regulação é legítimo e necessário. Há, inclusive, o entendimento de que a ANP busca maior competitividade no mercado de GLP. Mas, em todo o mundo, trata-se de um setor que exige altos investimentos para garantir o fornecimento seguro e contínuo, inclusive em países vizinhos como Chile, Colômbia e Uruguai.

“Corremos o risco de mudar uma regra que funciona e dá segurança a todo o abastecimento de GLP no país e não obter benefícios reais em troca para o consumidor”, alerta o presidente do Sindigás. Segundo ele, há o temor de que empresas sérias abandonem o mercado, levando à desorganização de uma cadeia que hoje opera de forma eficiente e segura.

Programa Gás do Povo: energia segura e inclusão

Se o objetivo da ANP e do governo é ampliar o acesso ao produto, o caminho mais eficiente, na visão do Sindigás, é fortalecer políticas sociais que entreguem o GLP a quem mais precisa.

Por isso, o sindicato apoia o programa Gás do Povo. Hoje, 23% das famílias brasileiras ainda utilizam lenha ou carvão para cozinhar, o que gera impactos sérios na saúde e no meio ambiente.

O Sindigás vê no programa uma oportunidade histórica de reduzir a pobreza energética e ampliar o acesso a uma energia segura. Estudos mostram que a queima de lenha emite 150 vezes mais CO₂ que o GLP, além de causar doenças respiratórias em mulheres e crianças, principais grupos expostos à fumaça dentro de casa.

A expectativa do Gás do Povo é atender cerca de 15,5 milhões de famílias de baixa renda cadastradas no CadÚnico, promovendo uma transição mais sustentável. As empresas associadas ao Sindigás e as 59 mil revendas espalhadas pelo país têm a experiência e a capilaridade necessárias para garantir que o programa seja eficaz.

As distribuidoras planejam investir bilhões na compra de novos botijões para atender à nova demanda. “Como vamos investir tanto se, a qualquer momento, a regra das marcas no botijão pode ser mudada? Quem vai cuidar de todo esse parque de botijões? O Brasil está começando um programa muito eficiente e, ao mesmo tempo, discute uma regra que vai na direção contrária. É preciso fazer uma escolha”, conclui Bandeira de Mello.

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