Responsabilidade jurídica das plataformas na intermediação do trabalho de entregadores

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Direito do Trabalho atua como ferramenta civilizatória para equalizar a assimetria na relação entre capital e trabalho, impondo um patamar mínimo de dignidade fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, CF/88), nos valores sociais do trabalho (art. 1º, IV, CF/88) e na função social da propriedade e do contrato (arts. 5º, XXIII, e 170, III, CF/88).

Contudo, uma ardilosa engenharia jurídica tem utilizado inovações tecnológicas e terminológicas, como “parceria” e “economia compartilhada”, para elidir a incidência da legislação protetiva e perpetuar a precarização do trabalho. Nesse contexto, o modelo de negócio das plataformas digitais, especificamente o iFood, que utiliza Operadores Logísticos (OLs) para gerenciar entregadores, representa um caso emblemático que demanda rigorosa análise jurídica.

A discussão central não reside no modelo de contratação direta pela plataforma, conhecido como Nuvem, cuja natureza jurídica aguarda definição pelo Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário (RE) 1.446.336 (Tema 1291), mas na estrutura que envolve os Operadores Logísticos. Nesse arranjo, a plataforma firma um contrato de “intermediação” com uma empresa terceira (o OL), que aloca entregadores em locais e horários de alta demanda definidos pela plataforma.

A questão a ser respondida é se a plataforma, ao se beneficiar desse trabalho, possui responsabilidade sobre os créditos trabalhistas na hipótese de reconhecimento do vínculo empregatício entre o entregador e o Operador Logístico, especialmente diante de decisões judiciais que a isentam com base na premissa de uma relação jurídica de índole meramente comercial.

A defesa das plataformas assenta-se na premissa de duas relações jurídicas autônomas: uma, de natureza civil-comercial, entre a plataforma e o OL; outra, de emprego, entre o OL e o entregador. Tal construção, no entanto, não resiste à aplicação do princípio da primazia da realidade sobre a forma, norteador do Direito do Trabalho e positivado no art. 9º da CLT.

A análise fática revela que o Operador Logístico não é um parceiro comercial autônomo com carteira de clientes diversificada; ao contrário, funciona como uma entidade interposta, desprovida de autonomia econômica e gerencial, criada com o propósito principal de servir como mero escudo patrimonial para a plataforma, absorvendo o passivo trabalhista e isolando o núcleo do poder econômico. Trata-se, em verdade, de manifesta fraude à legislação trabalhista por interposta pessoa, destinada a frustrar a aplicação da legislação protetiva.

A análise do “Contrato de Intermediação” firmado entre a plataforma e o OL revela a falácia dessa autonomia. Cláusulas que obrigam o OL a executar as entregas nos “moldes” e a submeter os entregadores a “treinamentos” definidos pela plataforma demonstram um controle sobre o modo de execução do serviço, e não a mera aquisição de um resultado, caracterizando ingerência direta na forma de execução do serviço.

Por outro lado, a previsão de que a plataforma pode “penalizar” o OL por descumprimento dos níveis de serviço exigidos revela o exercício do poder diretivo e disciplinar, típico de uma relação hierarquizada, e não a resolução de um contrato civil entre pares.

De forma crucial, a cláusula que outorga à plataforma o poder de exigir documentos e reter pagamentos para garantir o cumprimento das obrigações trabalhistas pelo OL configura, em si, uma confissão contratual de sua posição como garante final das obrigações, ao se reservar um poder-dever fiscalizatório. Ao se reservar esse poder e, posteriormente, falhar em exercê-lo de modo eficaz, a plataforma materializa sua culpa in vigilando de forma documentalmente provada.

Para além da realidade fática, a tese de irresponsabilidade ignora o arcabouço normativo aplicável. A Lei 12.009/2009 (Lei do Motofrete) é taxativa ao se referir àquele que “firmar contrato de prestação continuada de serviço com condutor de moto-frete”. A relação estabelecida pela plataforma, que depende da disponibilidade ininterrupta de entregadores gerenciados pelo OL, enquadra-se a essa hipótese normativa. A referida lei estabelece, em seus artigos 6º e 7º, a responsabilidade da contratante dos serviços, sujeitando-a inclusive a sanções trabalhistas.

Adicionalmente, a jurisprudência pacificada do Tribunal Superior do Trabalho, consolidada na Súmula 331, oferece fundamento para a responsabilização subsidiária, tratando a plataforma como tomadora de serviços que se beneficiou do trabalho prestado por meio de uma empresa interposta, cuja inadimplência atrai o dever de reparação.

A abstração dessas teses jurídicas contrasta com a realidade vivida pelos trabalhadores. Situações corriqueiras, como a de entregadores acidentados, sem registro em carteira de trabalho e desprovidos de qualquer amparo previdenciário, ilustram o dano concreto e a vulnerabilidade extrema gerados por essa engenharia contratual.

A ficção jurídica que isola a plataforma da relação de trabalho não protege o trabalhador; ao contrário, o expõe ao desamparo absoluto diante do infortúnio, negando-lhe o acesso aos direitos sociais trabalhistas e previdenciários mais basilares, que conformam o mínimo existencial do trabalhador (arts. 6º e 7º, da CF/88).

Mesmo que se admitisse, a título de argumentação, a natureza puramente civil do contrato entre a plataforma e o OL, a responsabilidade da empresa digital permaneceria. Os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva (arts. 421 e 422 do Código Civil) impõem deveres de proteção a terceiros afetados pela relação contratual.

Ao prever em contrato seu poder de fiscalização sobre as obrigações trabalhistas da contratada e se omitir, a plataforma viola esses deveres anexos, consubstanciando, ainda, o abuso de direito, na modalidade de ato ilícito equiparado (art. 187 do Código Civil).

Ademais, o paradigma global de devida diligência em direitos humanos, refletido nos Princípios de Ruggie da ONU e internalizado no ordenamento pátrio (Portaria Interministerial MTE/MDHC/MIR 18/2024), exige que as empresas previnam e remediem os impactos adversos de suas operações. Estruturar um modelo de negócio que fomenta a precarização e se apoia em intermediários insolventes constitui uma falha manifesta nesse dever, atraindo a responsabilidade civil de reparar integralmente os danos causados, nos termos dos arts. 186, 187 e 927 do Código Civil.

Embora a responsabilização subsidiária represente o patamar mínimo de proteção a ser garantido, uma análise mais aprofundada da estrutura do negócio revela que a solução jurídica mais adequada é a da responsabilidade solidária. A figura do Operador Logístico não representa uma terceirização lícita, mas um arranjo concebido com o propósito fraudulento de pulverizar a figura do empregador real e, assim, frustrar a aplicação da lei (art. 9º da CLT).

A plataforma digital não atua como mera tomadora, mas como a verdadeira gestora e beneficiária de toda a cadeia produtiva, controlando a tecnologia, a marca, os clientes e, em última análise, as condições de trabalho. Configura-se, assim, o grupo econômico por coordenação (art. 2º, §§ 2º e 3º, da CLT), no qual empresas com personalidades jurídicas distintas atuam sob um comando fático unificado. A própria Lei do Motofrete, aliás, já aponta para a solidariedade.

Portanto, reconhecer a responsabilidade solidária da plataforma é a única resposta jurídica que corresponde à realidade econômica, impondo o custo real à precarização calculada e promovendo um efetivo desestímulo à perpetuação de modelos de negócio que violam a ordem jurídica trabalhista

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