
Muito antes de a descarbonização entrar na pauta global, o Brasil já transformava canaviais em energia limpa, dando um passo fundamental para a transição energética – uma das questões centrais para o enfrentamento das mudanças climáticas, tema da COP30, que acontece em novembro, na cidade de Belém (PA). Não à toa, o país hoje está em uma posição privilegiada: os biocombustíveis correspondem a quase 30% da matriz energética brasileira – o dobro da média mundial. Esse percentual é resultado de um crescimento que seguiu constante nas últimas cinco décadas.
O principal vetor desse crescimento é o etanol, um biocombustível renovável produzido no Brasil principalmente a partir da cana-de-açúcar. Segundo a União da Indústria de Cana-de-Açúcar e Bioenergia (UNICA), em 2024, a primeira fonte de energia renovável do Brasil foi a cana-de-açúcar. Mas, nos últimos anos, também o milho vem ganhando espaço – conforme a Empresa de Pesquisa Energética (EPE), em 2024, 20% do etanol fabricado no país foi produzido a partir desses grãos.
Com essa oferta, o etanol está presente no tanque de todo veículo leve que circula no Brasil, mesmo os que abastecem com gasolina, uma vez que esse combustível atualmente tem em sua composição obrigatoriamente 30% de etanol anidro. Portanto, além de ser usado como alternativa à gasolina, ele também é um pilar importante da transição energética no país por sua capacidade de reduzir emissões de gases de efeito estufa e promover o uso eficiente de recursos naturais.
Cinquenta anos de evolução constante
Luciano Rodrigues, diretor de inteligência setorial da UNICA, lembra que os primeiros passos para incorporação do etanol a nossa matriz energética foram dados ainda nos anos 30 do século passado. Em 1931, durante o Governo Provisório de Getúlio Vargas, um decreto estabeleceu a mistura de até 5% de etanol à gasolina, medida que visava reduzir a dependência do país em relação à importação de combustíveis.
Entretanto, o grande impulso para chegarmos ao patamar atual se deu a partir dos anos 1970, com a crise do petróleo, deflagrada pelo aumento de preços dessa fonte energética impostos pela Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP). Desde então, ao longo de cinco décadas, uma série de iniciativas, tanto governamentais quanto do setor privado, impulsionou uma evolução constantes, com alguns marcos importantes.
O primeiro deles foi o lançamento do Programa Nacional do Álcool (Proálcool). Criado para reduzir a dependência externa de combustíveis fósseis, o programa consolidou as bases de uma cadeia produtiva que hoje é referência mundial em sustentabilidade, inovação e escala.
A Copersucar, ecossistema que oferece soluções de energia renovável e alimento natural e líder global na comercialização de açúcar e etanol, teve papel central desde o início, atuando na articulação entre produtores, desenvolvimento de infraestrutura e viabilidade econômica.
“O etanol é fruto de uma construção coletiva que atravessa décadas, unindo visão de futuro, políticas públicas e empreendedorismo. A Copersucar tem orgulho de ter contribuído desde os primeiros marcos dessa história, ajudando a consolidar um modelo de produção de biocombustível que hoje é referência mundial em sustentabilidade e transição energética”, afirma Priscilla Cortezze, diretora de comunicação e sustentabilidade da Copersucar.
Rodrigues, da UNICA, destaca a importância do movimento dos empreendedores do setor sucroalcooleiro. “Eles investiram e aperfeiçoaram esse sistema de produção, tanto do ponto de vista ambiental quanto econômico”, afirma ele.
Junção de iniciativas públicas e privadas
A indústria automobilística deu sua contribuição com a criação do motor flex, em 2003, permitindo que o veículo equipado com ele funcionasse com gasolina, etanol ou a mistura de ambos, alavancando a adesão do consumidor final.
Diversas políticas públicas também têm papel importante para a expansão desse biocombustível. Este ano, o Conselho Nacional de Política Energética (CNPE) aprovou o aumento da mistura de etanol anidro na gasolina de 27% para 30% (E30). A decisão está ancorada na Lei Combustível do Futuro, sancionada em 2024, para promover a descarbonização e a transição energética no Brasil. Entre outras coisas, ela estabelece programas e metas para aumentar a participação de biocombustíveis como etanol e biodiesel.
Outra iniciativa do governo brasileiro para impulsionar a descarbonização é o Programa Mover (Mobilidade Verde e Inovação). Seu objetivo é promover a inovação e a competitividade da indústria automotiva, focando na redução de emissões de carbono e no desenvolvimento de tecnologias mais eficientes.
A busca por avanços tecnológicos
Os avanços tecnológicos nessa área não param. Atuando na América do Sul com quatorze marcas, entre elas Fiat, Peugeot e Citroen, a Stellantis equipou o seu primeiro modelo, o Fiat 147, com um motor movido a etanol em 1979.
“De lá para cá, continuamos evoluindo. Temos um time de quatro mil engenheiros desenvolvendo tecnologias pensadas para as características do mercado Sulamericano. E uma dessas especificidades é o uso do etanol, um combustível que ganhou espaço no Brasil por conta da crise do petróleo, mas que acabou se transformando em um grande diferencial”, observa João Irineu Medeiros, vice-presidente de assuntos regulatórios da Stellantis para a América do Sul.
Agora, a empresa está investindo na combinação de eletrificação com etanol para reduzir emissões, um sistema batizado de Bio-Hybrid. Os primeiros modelos com essa tecnologia, Fiat Pulse Hybrid e o Fastback Hybrid, foram lançados em 2024. Eles usam um sistema hibrido-leve, com baixa voltagem. São veículos mais baratos. O próximo passo é aumentar os níveis de eletrificação em modelos híbridos de uma faixa mais cara.
Pioneirismo e inovação
A Toyota também apostou na tecnologia e foi pioneira em motorização híbrida flex, ou seja, o carro a combustão (gasolina ou etanol) com eletrificação. Ela introduziu o primeiro veículo híbrido no Brasil em 2013, o Toyota Prius.
Também foi pioneira na produção de veículos híbridos flex no país, com o lançamento do Corolla com essa tecnologia em 2019. Dois anos mais tarde, ampliou a oferta com o Corolla Cross, consolidando sua posição em eletrificação no Brasil.
“Um Corolla híbrido flex abastecido com etanol emite cerca de 70% menos CO₂ do que um veículo convencional a gasolina”, diz Roberto Braun, diretor de comunicação corporativa e ESG da Toyota.
A Toyota, entre outros parceiros, está também engajada em um projeto em andamento na Universidade de São Paulo (USP) que visa desenvolver um conversor para produzir hidrogênio a partir do etanol no próprio ponto de abastecimento, ou seja, aproveitando a infraestrutura de milhares de postos de combustíveis já existente no Brasil. “Isso está em fase de testes. Precisamos ainda ter uma ideia do custo para fazer a conversão do etanol em hidrogênio e entender como escalar essa alternativa”, explica Braun.
O diferencial do etanol para a descarbonização
De acordo com estimativas da UNICA, o Brasil tem uma frota de 31,9 milhões de veículos aptos a utilizarem qualquer combinação de gasolina e etanol. Os benefícios ambientais são inegáveis. Como apontam dados da UNICAdata – Observatório da cana e bioenergia, o consumo de etanol pelos veículos flex em substituição à gasolina reduz as emissões de gases de efeito estufa (GEE) em até 90%.
Outro diferencial do etanol de cana-de-açúcar vem da produção, também por conta da baixa emissão de GEE. Isso se deve às práticas de produção sustentável, tais como: no campo, o uso de biofertilizantes no cultivo da cana; na indústria, a produção de energia elétrica a partir da biomassa.
Um futuro ainda mais promissor
Na esteira das conquistas das últimas cinco décadas, o Brasil tem condições de aumentar de forma relevante o consumo de etanol e dar mais um passo na sua já consagrada e pioneira trajetória no uso desse biocombustível. É o que aponta o estudo “Mobilidade: Consumo de etanol hidratado tem potencial para crescer no Brasil”, conduzido pela Copersucar, destacando pontos como:
- O consumo de combustível (Ciclo Otto) deve continuar crescendo e superar 70 bilhões de litros por ano.
- Os veículos flex continuarão relevantes, representando pelo menos 75% de toda a frota do país, mesmo se os carros eletrificados responderem por metade das vendas de veículos novos até 2035.
- A conscientização do consumidor sobre os amplos benefícios do etanol (econômicos, sociais e ambientais) deve aumentar em função do avanço da agenda de transição energética e descarbonização mundial.
- Cada 10 pontos percentuais de acréscimo de utilização do etanol hidratado na frota flex representam o equivalente a cerca de 6 milhões de toneladas de CO₂ de emissões evitadas e mais de 5 bilhões de litros de etanol de demanda.
Portanto, as raízes que o Brasil consolidou com o etanol na transição energética estão cada vez mais firmes. Elas são fruto de uma atuação consistente e de longa data, que aposta nesse biocombustível como uma solução de grande escala, apoiada por uma cadeia logística madura, capaz de garantir distribuição rápida e a custos competitivos. Hoje, o mundo começa a reconhecer que, sem desmerecer outras fontes renováveis, apenas o etanol está plenamente pronto para atender à demanda global com qualidade, eficiência e impacto imediato.