A filosofia vai engolir a inteligência artificial

Em 2011, Marc Andreessen lançou uma das frases mais influentes da era digital: “o software está engolindo o mundo”. O diagnóstico foi preciso, já que as linhas de código passaram a ditar a história de setores inteiros da economia, reconfigurando as estruturas produtivas, informacionais e relacionais do nosso tempo.

Uma década depois, Jensen Huang, CEO da Nvidia, atualizou a máxima: agora, é a inteligência artificial que está engolindo o software. Huang tem razão. Vivemos a ascensão de sistemas capazes não apenas de operar, mas também de aprender, gerar, decidir, interagir e persuadir.

Contudo, o que ainda escapa à percepção da maioria é que a próxima grande transformação não será nem técnica, nem algorítmica — será filosófica. A tese pode soar radical, mas é inevitável: a filosofia vai engolir a inteligência artificial. E essa previsão não é apenas uma figura de linguagem. É um imperativo estratégico.

A criação de agentes realmente autônomos exige mais do que simples escalabilidade computacional ou qualidade de dados. Para além da técnica, é necessário projetá-los com base em critérios de propósito, discernimento e juízo. Exige contexto. Exige visão de mundo. E é justamente nisso que a filosofia opera: não como uma abstração acadêmica, mas como infraestrutura invisível das decisões, dos critérios e dos fins.

Reduzir filosofia à ética é, portanto, um erro conceitual e prático. A ética é crucial, mas é apenas uma das faces de um corpo mais amplo, que inclui a epistemologia (o que é saber e como se conhece), a ontologia (o que existe e como representar a realidade), a teleologia (para que se age, com que finalidade) e a metafísica (a estrutura última da realidade).

Reduzir a filosofia apenas à ética é, portanto, um erro tanto conceitual quanto prático. Embora a ética seja crucial, ela representa apenas uma das faces de um corpo teórico muito mais amplo, que inclui a epistemologia — responsável por questionar o que é saber e como se conhece; a ontologia — dedicada a investigar o que existe e como representamos a realidade; a teleologia — que trata dos fins e finalidades da ação; e a metafísica — que busca compreender a estrutura última da realidade. Cada uma dessas áreas oferece lentes fundamentais para enxergar os desafios que a inteligência artificial nos impõe.

Sem essas lentes, a IA continuará sendo apenas um conjunto sofisticado de padrões estatísticos. Embora gerem respostas corretas em sentido formal, potencialmente errarão em termos humanos. Serão, muitas vezes, impressionantes em sua performance externa, mas essencialmente vazios por dentro. Ignorar essas dimensões é negligenciar que visões de mundo estão embutidas nas escolhas feitas durante a construção dessas tecnologias. Da curadoria dos dados ao design dos algoritmos, há sempre uma carga filosófica implícita.

É justamente nesse ponto que a filosofia se revela como a verdadeira propulsora da próxima geração de inteligência artificial. Não estamos mais apenas diante do desafio de ajustar parâmetros, treinar modelos ou refinar datasets. O problema agora é outro: reconhecer que visões de mundo, com todas as suas cargas ideológicas, ontológicas e éticas, estão embutidas em cada linha de código e em cada escolha de design tecnológico.

Sam Altman, ao perseguir a chamada Inteligência Artificial Geral (AGI), demonstra que o centro do debate já não é apenas técnico, mas, antes de tudo, um debate filosófico que gira em torno de temas como consciência, inteligência e propósito.

Dois mil anos antes, a necessidade de integrar diferentes formas de saber também foi antecipada por Aristóteles, que distinguiu com precisão três formas de conhecimento: episteme (conhecimento teórico), techne (conhecimento técnico) e phronesis (sabedoria prática). Um sistema de IA que apenas simula linguagem permanece restrito ao campo da techne. Se ele calcula, infere e classifica, pode até alcançar uma forma limitada de episteme. Mas, para deliberar em contextos reais, permeados por múltiplas variáveis humanas, sociais e morais, será imprescindível desenvolver algo próximo da phronesis. E essa capacidade não se obtém com mais dados, mas com mais filosofia.

A IA verdadeiramente relevante no futuro não será aquela que responderá com eficiência, mas sim a que compreende com eficácia. E não se enganem: eficácia não é apenas atingir metas, mas saber escolher quais metas realmente valem a pena ser perseguidas. Treinar um agente artificial sem estrutura filosófica sólida é como preparar um atleta apenas para correr, mas sem indicar para onde correr e por quê correr.

Aqui, vale a provocação: se estamos avançando para um cenário em que as maiores decisões sobre tecnologia serão, em essência, decisões filosóficas, por que as grandes empresas de tecnologia ainda contam com tão poucos filósofos em suas equipes? Onde estão os epistemólogos, ontólogos e eticistas nas mesas de diretoria das big techs? Talvez a maior falha de design dessas inteligências não resida no código, mas justamente na ausência de filosofia nos bastidores.

Na era da inteligência artificial, renascem as ágoras gregas. Já não basta processar informações: é preciso produzir sentido. Já não basta operar de forma preditiva: é preciso agir com discernimento. O que fará a diferença não será a quantidade de tokens processados, mas a qualidade das finalidades integradas ao sistema.

A filosofia não só orienta os usos da IA, como também melhora profundamente o próprio processo de treinamento desses sistemas. Uma IA treinada sem clareza epistemológica aprenderá padrões, mas não sabe o que é saber. Sem teleologia, ela otimiza métricas, mas não compreende o valor dos fins. Sem metafísica, opera em uma realidade simulada, mas sem critério para distinguir o que realmente importa, reduzindo a realidade apenas a algoritmos sem qualquer profundidade existencial.

Toda arquitetura técnica carrega uma visão de mundo. Toda base de dados seleciona uma realidade. Toda métrica operacionaliza um valor. Ou seja: por baixo de cada modelo, há uma ontologia; por trás de cada algoritmo, uma teleologia; por dentro de cada decisão automatizada, uma filosofia.

Por isso, o verdadeiro diferencial competitivo e civilizacional do nosso tempo não está apenas na engenharia e nas ciências de dados. Está na integração lúcida entre técnica e filosofia e na coragem de ensinar a uma máquina não apenas o que fazer, mas por que agir, e com que finalidade. E isso, nenhum chip faz sozinho. É missão dos filósofos, do CPO, Chief Philosophers Officer.

A filosofia vai engolir a inteligência artificial. Mas não se trata de um gesto predatório, destrutivo ou bélico. A filosofia engole como quem digere. Ela decompõe, analisa, questiona e, só então, reintegra. Como um organismo crítico, ela absorve o que é útil, rejeita o que é nocivo e transforma o que é bruto em algo assimilável, dotado de sentido e propósito

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