
Um dos principais desafios das políticas sociais no Brasil é definir como e quando as famílias beneficiárias deixam de depender de programas como o Bolsa Família, sem que isso represente a perda abrupta de sua segurança de subsistência.
Embora haja uma retórica cada vez mais presente sobre “ensinar a pescar” em vez de “dar o peixe”, o que se observa é que, ao menor sinal de melhora de renda, o Estado frequentemente retira o anzol – isto é, o suporte mínimo que ainda garantiria estabilidade à pessoa em transição.
Empresas que buscam a contratação temporária de pessoas beneficiadas pelo Bolsa Família para tocar algum projeto relatam que é muito comum o receio à formalização. Não é para menos: abrir mão de um suporte governamental por algo temporário, sem garantia de continuidade, não é convidativo.
De um lado, existem políticas públicas que estimulam o empreendedorismo, a formalização e a inclusão produtiva. De outro, faltam mecanismos sólidos de transição entre o momento de entrada no mercado e a consolidação de uma nova fonte de renda. O resultado disso é a insegurança de muitas famílias que evitam empregos formais ou criam estratagemas para não perder o benefício – realidade que reforça a informalidade e perpetua a desigualdade.
Essa dinâmica tem base empírica. De acordo com dados oficiais divulgados pelo próprio governo federal, 1,3 milhão de famílias deixaram o Bolsa Família ao longo de 2024 por ultrapassarem o limite de renda de meio salário-mínimo per capita (R$ 706 à época) – ainda que, em alguns casos, essa elevação fosse temporária ou sazonal.
O governo também informa que, desde março de 2023, cerca de 7 milhões de famílias tiveram o benefício bloqueado ou cancelado por inconsistências cadastrais ou cruzamento de dados com outras bases administrativas. Embora o processo admita reavaliação, o bloqueio ocorre de forma automática e imediata, gerando receio e efeitos severos sobre famílias vulneráveis.
Atualmente, o período da chamada regra de proteção garante que a pessoa beneficiária siga no programa social recebendo 50% do valor do benefício por alguns meses, quando a renda familiar per capita mensal aumentar de R$ 218 para até R$ 706. A nova Portaria MDS 1.084/2025 reduziu neste ano o prazo da regra de proteção de 24 para 12 meses e, embora em consonância com a legislação, estreitou a margem de segurança para quem está em transição econômica.
Algumas histórias ilustram essa sistemática. A BBC Brasil documentou o caso de Rosilene Martins, moradora de Anastácio (MS), que teve o valor de seu Bolsa Família reduzido à metade logo após conseguir um emprego formal. Embora ainda enfrentasse dificuldades financeiras, em razão do baixo valor da elevação de sua renda formal, motivou a aplicação da chamada “regra de proteção”, permitindo que continuasse a receber parte do benefício social por tempo limitado.
Já em Diadema (SP), Ingrid Evangelista, grávida e desempregada, acessou o benefício e, mesmo após voltar ao mercado como auxiliar de limpeza, conseguiu manter temporariamente o apoio como complemento à renda – um exemplo positivo de aplicação da transição gradual que já é prevista em razão da superação do teto de valor da legislação.
Contudo, o tratamento das rendas variáveis ou sazonais continua mal regulamentado. A Lei 14.601/2023, que reestruturou o programa Bolsa Família, prevê expressamente, em seu artigo 4º, §1º, I, que valores recebidos de forma “eventual, temporária ou sazonal” podem ser excluídos da base de cálculo da renda familiar para fins de elegibilidade, desde que haja regulamentação específica.
O mesmo se observa no Decreto 11.016/2022, que regula o Cadastro Único, ao prever, em seu artigo 5º, VI, “c” e “d”, a possibilidade de exclusão de rendimentos não habituais da composição da renda per capita.
O problema é que, até o momento, não foi publicada nenhuma norma que defina, de forma objetiva, quais rendas se enquadram como “temporárias ou sazonais”. Com isso, trabalhadores informais, safristas, ambulantes, pescadores artesanais, pessoas que atuam em atividades turísticas ou festas populares seguem à margem de uma transição econômica segura, mesmo quando suas fontes de renda não garantem estabilidade ao longo do ano.
Assim, a despeito dos avanços normativos, o arcabouço jurídico atual ainda carece de regulamentações que assegurem efetivamente uma transição justa para quem começa a gerar renda, mas ainda não possui estabilidade. O risco de não se olhar para essa questão é fomentar comportamentos defensivos, como a informalidade proposital, a omissão de informações no Cadastro Único, ou a recusa a empregos com carteira assinada – não por escolha, mas por medo de perder um benefício vital antes do tempo.
Nesse cenário, é urgente que o governo federal, por meio do Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome (MDS), em conjunto com outros órgãos federais, edite norma regulamentadora específica para definir os parâmetros de exclusão da renda eventual, temporária ou sazonal do cálculo da renda familiar.
Tal medida poderá estimular a formalização de vínculos formais relacionados às iniciativas econômicas que tenham caráter eventual ou temporário, criando bases para um desenvolvimento mais seguro de transição econômica. Tal iniciativa encontra previsão legal clara e poderia ser precedida de consulta pública, conforme o artigo 29 da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, permitindo que as medidas reflitam a diversidade de realidades socioeconômicas do país.
A transição econômica segura não é apenas uma questão de gestão pública: trata-se de uma dimensão essencial de eficiência e integridade de mercado com justiça social.