
Débora Rodrigues dos Santos, 39 anos, uma das condenadas pelos atos golpistas do 8 de janeiro de 2023, é uma cabelereira branca, casada, mora no interior de São Paulo e mãe de duas crianças. Pixadora da estátua-símbolo da Justiça, ela está no centro do debate acerca do suposto rigor excessivo das penas aplicadas pelo Supremo Tribunal Federal (STF) aos que depredaram os edifícios da Praça dos Três Poderes.
À exceção do gênero, ela representa o perfil médio dos que, conscientemente ou não, serviram de massa de manobra na última tentativa de golpe de Estado no Brasil. Reportagem publicada no último domingo pelo O Globo indica a predominância de homens brancos com ensino médio, autônomos e renda de até dois salários mínimos entre os condenados.
Em prisão domiciliar desde a semana passada, Débora merece como qualquer cidadã ou cidadão ter sua pena reconsiderada nos limites da lei. Convido o leitor a pensar, porém, se a mesma empatia por parte de setores de direita aplicar-se-ia no caso de pessoas não-brancas.
Não há dados sistematizados, por exemplo, sobre o perfil racial de presos e condenados por roubo famélico, mas casos expostos na mídia costumam envolver cidadãos negros, como foi o caso de um homem torturado por policiais militares em São Paulo após ter furtado alimentos de um supermercado na Vila Mariana em junho de 2013.
Não se trata aqui de defender uma espécie identitarismo legal, com a defesa de leniência para autores de crimes oriundos de grupos marginalizados, mas de constatar que percepções sobre cor e/ou raça associadas a outros marcadores sociais impactam como percebemos se uma pena é justa ou injusta. Nesse sentido, parece-me bastante lógico pensar num pacto de branquitude a permear os clamores por anistia.
Para além de questões raciais, há, no caso do 8 de janeiro, o debate legítimo sobre a natureza política dos delitos. Nenhum dos condenados, porém, está preso devido à posição política que defende, mas pelos métodos empregados para fazer valer sua visão para o país.
Dizer que há presos políticos dentre os condenados é endossar a narrativa bolsonarista de que as eleições de 2022 foram ilegítimas, seja por supostas fraudes nas urnas sobre as quais não há a mínima evidência, seja pela participação do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) como candidato após a anulação de sua condenação por vícios processuais no âmbito da operação Lava Jato.
Voltando ao viés racial de percepções de injustiça no país, cabe ainda discutir se os clamores por anistia não refletem a natureza identitária do bolsonarismo que, tal e qual o trumpismo e movimentos de extrema-direita populista similares ao redor do mundo, defende uma visão étnico-religiosa de nacionalismo. No caso brasileiro, sobressai-se a dimensão cristã, vista como matriz exclusiva da formação do Brasil por parte dos reacionários tupiniquins.
A dimensão racial entra em segundo plano, mas é igualmente importante. Isso porque reflete o racismo à brasileira, expressão cunhada pelo professor de sociologia Edward Telles, da Universidade da Califórnia, em Irvine, no livro homônimo, publicado em português há 22 anos. Sutil, nem sempre, porém, discreto, mas, ainda assim, racismo.
Com estatísticas inequívocas sobre o predomínio de homens negros e jovens entre a população carcerária, é inevitável perguntar se o discurso de “bandido bom é bandido morto” e “CPFs cancelados” existiria caso o perfil sociológico dos presidiários em geral fosse o mesmo daqueles condenados no âmbito do golpe malsucedido de 8 de janeiro.
Independentemente da cor ou raça, gênero, profissão, pode-se parafrasear o clamor da direita por uma polícia que mata antes de justiça julgar de acordo com o devido processo legal e concluir que, na democracia, golpista bom é golpista preso. Isso se aplica a qualquer nível hierárquico de uma quadrilha formada para subverter o Estado Democrático de Direito.
Vozes conservadoras costumam a ser as primeiras a defender que adultos devem ser tratados como seres com plena responsabilidade de escolha sobre seus atos. O vídeo exibido pelo ministro Alexandre de Moraes no julgamento da admissibilidade da denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) e outros 7 réus pela série de crimes que culminaram no 8 de janeiro é didático sobre a validade daquela premissa.
Ao deixarem a frente do quartel-general do Exército para invadir as sedes dos poderes da República, apoiadores do bolsonarismo sabiam que desafiavam a ordem constitucional estabelecida. Se o debate da proporcionalidade das penas é legítimo, a anistia dos patriotas que jamais imaginaram estar no papel daqueles cuja existência e humanidade questionam será o começo do fim da democracia brasileira numa era em que autocratização e nacionalismo exacerbado virou regra que pavimenta o caminho a um verdadeiro estado de exceção.