O programa de integridade na Lei de Licitações e Contratos Administrativos

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Com o advento da Lei 14.133, de 2021, inaugurou-se novo marco regulatório dos contratos e licitações no âmbito da Administração Pública, que representa a consolidação dos mecanismos e entendimentos jurisprudenciais estabelecidos sob a égide do regime anterior[1], bem como introduz inovações que buscam aprimorar a disciplina a respeito do assunto.

Por meio desse arranjo, a nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos busca conferir maior densidade aos objetivos do procedimento licitatório, em especial, a seleção da proposta mais vantajosa para a Administração, a garantia de tratamento isonômico e competição justa aos licitantes, e a promoção do desenvolvimento sustentável do país.

Nesse contexto, o legislador estabeleceu a necessidade de fortalecer a integridade nas compras públicas com o propósito de inibir práticas que impliquem o desrespeito de normas ou padrões de ética e evitar conluios entre empresas ou mesmo dessas com a Administração.

Essa preocupação está refletida na Lei tanto na determinação para que a administração pública implemente processos e estruturas, com o intuito de promover um ambiente íntegro e confiável, quanto nas disposições que preveem a implantação de programa de integridade por aqueles agentes econômicos que desejam contratar com a Administração.

Com relação a esse último ponto, a Lei conferiu tratamento especial ao programa de integridade, ao alçá-lo como: i) um dos aspectos a serem considerados na aplicação de sanções (art. 156, § 1°, inciso V); ii) requisito para as contratações de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto (art. 25, § 4º); iii) critério de desempate entre propostas (art. 60, caput, inciso IV); e iv) condição para reabilitação do licitante ou contratante quando praticadas determinadas infrações (art. 163, parágrafo único).

Para regulamentar os dispositivos que cuidam do programa de integridade nas hipóteses de contratações de grande vulto, desempate entre propostas e reabilitação, recentemente, foi editado o Decreto 12.304, de 9 de dezembro de 2024.

O Decreto se aplica a todas as contratações realizadas por órgãos e entidades públicas estaduais, distritais e municipais, com recursos oriundos de transferências voluntárias da União, às concessões e permissões de serviços públicos, às parcerias público-privadas, e a outros processos de licitação e contratação pública regidos, subsidiariamente, pela Lei de Licitações e Contratos Administrativos, salvo previsão específica em contrário.

A regulamentação é inspirada nos dispositivos relacionados ao programa de integridade da Lei 12.846, de 2013 (Lei Anticorrupção), regulamentados pelo Decreto 11.129, de 2022. Todavia, há distinções relevantes, fruto do regime específico das contratações públicas e da necessidade de aperfeiçoamento constatada pela Controladoria-Geral da União (CGU) a partir da experiência vivenciada com a Lei Anticorrupção.

O primeiro elemento distintivo diz respeito aos objetivos do programa no contexto da Nova Lei de Licitações. Desse modo, além de prevenir, detectar e sanar desvios, fraudes, irregularidades e atos lesivos praticados contra a administração pública, nacional ou estrangeira; e fomentar e manter uma cultura de integridade no ambiente organizacional, também passou a ser objetivo do programa mitigar os riscos sociais e ambientais decorrentes das atividades da organização, de modo a zelar pela proteção dos direitos humanos.

A alteração é salutar. Primeiro, porque induz as empresas a adotarem boas práticas orientadas para a preservação do meio ambiente e responsabilidade com a sociedade, consolidando a concepção da integridade socioambiental como princípio a ser observado pelo setor privado.

Tal inovação está em consonância com o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável 12 da Organização das Nações Unidas (ONU) de assegurar padrões de produção e de consumo sustentáveis, mediante a promoção de práticas de compras públicas sustentáveis, de acordo com as políticas e prioridades nacionais[2].

A propósito, a Declaração Ministerial do Grupo Anticorrupção do G20 aprovou, sob a presidência brasileira, a concepção de que “a integridade empresarial deve ser baseada em uma abordagem abrangente, e instamos o setor privado a respeitar e considerar não apenas os princípios anticorrupção, mas também os direitos humanos, o trabalho e o meio ambiente, em conformidade com os marcos legais nacionais”[3].

Como desdobramento da ampliação do escopo do programa de integridade, novos parâmetros para avaliação foram incorporados ao Decreto, como a transparência e a responsabilidade socioambiental da pessoa jurídica; o monitoramento contínuo do programa com vistas ao seu aperfeiçoamento na prevenção, na detecção e no combate à ocorrência de condutas que atentem contra os direitos humanos e trabalhistas e o meio ambiente; e mecanismos específicos para assegurar o respeito aos direitos humanos e trabalhistas e a preservação do meio ambiente.

A CGU será o órgão responsável por avaliar os programas de integridade. Para tanto, editará orientação sobre a metodologia de avaliação e forma de submissão dos documentos e informações necessários para comprovar a implantação do programa.

Há duas situações em que a avaliação poderá vir a ser dispensada: a aprovação no programa Pró-Ética da CGU ou o reconhecimento de avaliação realizada por outro órgão ou entidade pública federal, estadual, distrital ou municipal, que siga o mesmo padrão definido pelo governo federal.

Essa última previsão incentiva a harmonização de entendimentos entre as diversas esferas de governo, de modo que o setor privado possa pautar suas práticas de integridade a partir de uma orientação uniforme e, assim, diminuir custos de atendimento a regras distintas eventualmente estabelecidas por diferentes órgãos públicos.

O Decreto também trata da atuação repressiva da CGU. O licitante ou contratado que não prestar as informações requeridas ou deixar de implementar as medidas de integridade, estará sujeito ao procedimento de responsabilização da Lei 14.133, de 2021, no qual poderá ser punido com advertência, multa, impedimento de licitar e contratar ou declaração de inidoneidade para licitar ou contratar.

O período de vacatio legis do Decreto é de 60 dias, prazo em que caberá à CGU editar normativos complementares detalhando o processo de avaliação dos programas de integridade e, assim, nortear sua efetiva aplicação.

A corrupção é, sem sombra de dúvidas, um fenômeno complexo, com causas de diferentes naturezas e, portanto, precisa ser enfrentada a partir de medidas diretas e indiretas, combinando iniciativas tanto de combate, como de promoção da integridade de forma abrangente.

E a edição do Decreto 12.304, de 2024, é uma dessas medidas. Sem perder de vista que o governo deve adotar mecanismos efetivos de prevenção a ilícitos, o regulamento destaca o papel igualmente importante do setor privado na promoção de uma sociedade mais íntegra.

O Decreto concretiza a previsão da Lei 14.133, de 2021, que estabeleceu uma importante abordagem de incentivos à integridade por parte dos licitantes e contratantes. Em determinados cenários, a implementação de programa integridade se torna um requisito necessário (contratos de grande vulto e reabilitação), em outro, torna-se um diferencial competitivo (critério de desempate).

Percebe-se, assim, que o Decreto 12.304, de 2024, contribuirá substancialmente para promover um ambiente mais íntegro e confiável no âmbito das contratações públicas.

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