Vínculo empregatício com apps: STF definirá o futuro do trabalho e da Justiça no Brasil

Fotomontagem: Golucas

Nestas segunda-feira (9/12) e terça-feira (10/12), o Supremo Tribunal Federal (STF) vai realizar audiência pública no âmbito do Recurso Extraordinário (RE) 1446336, que teve repercussão geral reconhecida no Tema 1.291. No recurso, a Uber questiona uma decisão do Tribunal Superior do Trabalho (TST) que reconheceu vínculo empregatício entre a empresa e uma motorista da plataforma. 

A audiência, que terá 58 participantes, será mais um passo para trazer maior segurança jurídica ao tema da ‘uberização’ do trabalho, como o regime de trabalhadores de plataformas digitais tem sido chamado. O julgamento ainda não tem data, mas, em seu voto pela repercussão geral, o relator Edson Fachin apontou a urgência da matéria. “Não se pode olvidar que há decisões divergentes proferidas pelo Judiciário brasileiro em relação à presente controvérsia, o que tem suscitado uma inegável insegurança jurídica”, escreveu.

Enquanto a Justiça do Trabalho, com alguma frequência, tem entendido as relações de motoristas e entregadores com os apps como vínculo empregatício, o STF já decidiu no sentido contrário em reclamações constitucionais, ou seja, em processos individuais. Em alguns casos pontuais chegou a manter decisões condenando empresas que prestavam serviços terceirizados para plataformas de entregas, como no RCL 66341, julgado pela 1ª Turma.

O embate de opiniões, inclusive, é bastante público: em outubro do ano passado, durante julgamento de uma reclamação constitucional, o ministro Gilmar Mendes criticou a Justiça do Trabalho por, supostamente, desrespeitar a jurisprudência do STF sobre a terceirização de serviços. Ele afirmou que os “caprichos da Justiça do Trabalho não devem obediência a nada: à Constituição, aos Poderes constituídos ou ao próprio Poder Judiciário”.

Assim, além de possivelmente conciliar visões de plataformas e trabalhadores, o julgamento no Supremo terá consequências para os ramos do Judiciário, que deverão aplicar o entendimento que for pacificado. Um estudo do Núcleo de Extensão e Pesquisa “O Trabalho Além do Direito do Trabalho”, vinculado à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), publicado em 2023, apontou que as decisões do STF sobre pejotização — discussão distinta da uberização — tem erodido o Direito do Trabalho, apontando para um possível esvaziamento da Justiça do Trabalho. “A emenda constitucional 45, de 2004, coloca que cabe à Justiça do Trabalho dirimir a questão sobre o vínculo empregatício”, diz a presidenta da ANPT, Adriana Augusta de Moura Souza. “Agora o Supremo vem dizendo que, em função das decisões sobre terceirização, a Justiça do Trabalho estaria usurpando competência alheia, ou pior, afrontando decisões da Suprema Corte. No nosso entender, isso não é verdadeiro”.

Supremo vs Justiça do Trabalho

Em 2021, quando o ministro Alexandre de Moraes, ao julgar o caso de um motorista da Cabify, cassou uma decisão da Justiça do Trabalho que havia reconhecido o vínculo empregatício. Moraes argumentou que, embora o motorista dependesse economicamente da plataforma, a liberdade para escolher horários e serviços descaracterizava a subordinação. “A natureza inovadora das plataformas digitais deve ser protegida de interferências que engessem o mercado”, declarou o ministro na ocasião. 

Desde então, outros ministros decidiram remeter discussões envolvendo trabalhadores autônomos de aplicativos para a Justiça Comum, afastando a Justiça do Trabalho, ao depararem com reclamações sobre o tema. O ministro Gilmar Mendes afirmou que “a Justiça do Trabalho tem sua competência limitada às relações regidas pela legislação trabalhista. Não cabe a ela tratar de contratos civis baseados em autonomia privada”. 

Neste ano, em fevereiro, o STF analisou uma ação da Rappi que contestava decisões da Justiça do Trabalho que reconheciam vínculo empregatício entre a empresa e um entregador. O Supremo, ao julgar o caso, reafirmou a inexistência de vínculo empregatício, destacando a autonomia dos trabalhadores para escolher horários e aceitar ou recusar entregas. 

Por outro lado, alguns juízes a Justiça do Trabalho tem assumido uma postura mais protetiva ao trabalhador, baseada na identificação de elementos de subordinação indireta, que vem sendo chamada de “subordinação algorítmica”. Por exemplo, em decisão de setembro de 2023, o Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região (TRT2) reconheceu o vínculo entre um entregador e a Rappi, destacando o uso de algoritmos para monitorar a produtividade e penalizar comportamentos considerados inadequados. O tribunal apontou que “o controle exercido pela plataforma, ainda que indireto, configura subordinação nos moldes contemporâneos da relação de emprego”.

“A subordinação algorítmica não existe na lei, isso é uma criação ideológica da jurisprudência para tentar aproximar isso de uma relação de emprego”, diz Rafael Caetano de Oliveira, sócio de Trabalhista do Mattos Filho, escritório que representa a Uber na ação do STF. “Como um algoritmo tem poder de mando em relação ao motorista se é ele quem decide se quer ou não estar nessa relação? Para muitas pessoas, o app é meramente complementação de renda”. 

A Justiça do Trabalho também já reconheceu as relações dentro da definição de trabalho intermitente. Em dezembro de 2021, a 2ª Vara do Trabalho de Divinópolis, vinculada ao TRT3, reconheceu a relação de emprego entre um motorista e a Uber sob a modalidade. O juiz Bruno Alves Rodrigues identificou elementos característicos da relação empregatícia, como subordinação, pessoalidade, habitualidade e onerosidade – e já que os serviços eram prestados de forma não continuada.

“Nós não queremos nem o reconhecimento de um vínculo CLT, mas sim o reconhecimento de algum tipo de relação de trabalho. Nós nos enquadramos como trabalho intermitente, com o horário diferenciado”, diz Euclides Magno, presidente do Sindicato dos Motoristas de Transporte por Aplicativo do Pará (SINDTAPP), que atua como amicus curiae na ação do STF. “E, se decidir que somos autônomos, que sejamos ‘autônomos raiz’, que tenhamos condição de precificar corridas, determinar rotas e escolher clientes”. Em outubro, Magno fraturou o braço, e ficou semanas sem poder trabalhar. 

Mas nem sempre a Justiça do Trabalho está tão distante dos entendimentos do STF. A 3ª Turma do TRT2, negou, por maioria, o reconhecimento de vínculo entre a 99 Tecnologia e os motoristas, no âmbito de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público do Trabalho (MPT). Por dois votos a um, o colegiado manteve o entendimento da 72ª Vara do Trabalho de São Paulo, que já havia julgado o pedido improcedente.

Por outro lado, também nesta semana, a 14ª Turma do TRT2 ordenou o iFood a reconhecer o vínculo com todos os seus entregadores e a pagar indenização de R$ 10 milhões.

Também na mais alta Corte trabalhista do país há julgados divergentes. Em 2020, a 5ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) não reconheceu o vínculo entre um motorista e a Uber, já que, para o colegiado, não havia subordinação jurídica, habitualidade e pessoalidade, elementos essenciais para a caracterização conforme a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT). Além disso, a decisão afirmou que a intermediação tecnológica da plataforma, por meio de algoritmos, não configura controle direto sobre o trabalhador, mas sim uma organização logística voltada para a eficiência do serviço. Dois anos depois, a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) reconheceu o vínculo empregatício entre um motorista e a Uber.

Pesquisa jurisprudencial feita pelo JOTA PRO no TST mostrou que há tendência de a Corte em negar o vínculo, mas ainda existe chance de reversão. Alguns ministros se manifestaram em poucas decisões, mantendo decisões de TRTs por não poderem rever provas, sem avançar no mérito. Outros ainda não julgaram.

Alguns motoristas alegam que o reconhecimento de vínculo empregatício também obrigaria Uber, 99 e outros apps de transporte a se enquadrarem como empresas de transporte – o que implicaria uma série de outras obrigações como licenças para a operação. Hoje, as companhias são consideradas do ramo da tecnologia. “Alterar isso também ignora repercussões tributárias que prejudicariam os próprios parceiros”, diz André Porto, diretor-executivo da Associação Brasileira de Mobilidade e Tecnologia (Amobitec).

O posicionamento do Supremo Tribunal Federal será essencial para trazer mais estabilidade e segurança jurídica para as empresas e também para os trabalhadores.

Nem isso, nem aquilo

As tentativas de pacificar o tema também têm vindo de outras esferas do poder. O Projeto de Lei 12/2024, enviado ao Congresso pelo governo federal em 2024, visa regulamentar parte das relações de trabalho em plataformas digitais, criando um marco jurídico específico para a categoria de motoristas, diferente da CLT, mas que garantisse alguns direitos aos trabalhadores.

Conforme o texto, a remuneração bruta dos motoristas seria dividida em duas parcelas: 25% correspondentes aos serviços prestados e 75% destinados à indenização de custos operacionais. Além disso, há previsão de uma remuneração mínima previamente estabelecida de R$ 32,10 por hora. Há também um limite máximo de 12 horas diárias de conexão dos motoristas às plataformas. 

O PL também estabelece que as empresas de aplicativos devem recolher INSS para os condutores, garantindo acesso a benefícios previdenciários como aposentadoria e auxílio-doença. Além da contribuição dos motoristas, o projeto estabelece que as empresas operadoras de aplicativos também deverão contribuir para a Previdência Social. A alíquota de contribuição das empresas está fixada em 20% sobre o salário de contribuição dos motoristas.

O texto foi construído a partir de um grupo de trabalho montado pelo governo, que envolveu empresas e sindicatos. “Para quem não tinha nada, o que foi decidido no PL é de fundamental importância, nos assegurando como trabalhador”, diz Magno, do SINDTAPP. No entanto, o projeto, apresentado em março, ainda nem passou pela Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ). Para Magno, o governo não priorizou a comunicação com os parlamentares. 

“A proposta confere segurança jurídica para as empresas investirem no Brasil e agrega benefícios para os trabalhadores, como inclusão no sistema previdenciário, cuja contribuição será feita por empresas e trabalhadores, definição de ganhos mínimos e regras de transparência, entre outros avanços”, disse a Amobitec, em nota, à época da apresentação do PL. 

A ideia do governo era também encaminhar uma regulamentação para entregadores – mas o grupo de trabalho dessa categoria não avançou em consensos. Há também questionamentos se um precedente poderia abarcar todos os apps. “Há algumas semelhanças entre as plataformas, mas os trabalhadores mesmo dizem, em entrevista que conduzimos com eles, que percebem diferença grande na composição do preço, lógica mercadológica. Há muitas diferenças nos termos de uso, que são importantes”, diz a presidenta da Associação Nacional dos Procuradores e das Procuradoras do Trabalho (ANPT), Adriana Augusta de Moura Souza. 

Para Michele Volpe, líder do Comitê de Logística e Delivery do Movimento Inovação Digital e head de Legal da Rappi, os trabalhadores de plataformas também devem ter um marco legal diferenciado para que direitos e benefícios sejam oferecidos de acordo com a realidade brasileira. “Podemos oferecer mais capacitação, ajudar com skills do futuro, ensinar sobre automação”, diz. “E isso poderia virar algo a ser formalmente oferecido, não só um ou outro”. 

Drive my car

A tentativa de enquadrar trabalhadores de plataformas em uma categoria jurídica específica não é novidade – no Reino Unido, a Suprema Corte decidiu em 2021 que motoristas da Uber devem ser classificados como workers, uma categoria intermediária entre empregados e autônomos prevista na legislação britânica. Essa decisão reconhece que, embora os motoristas mantenham certa autonomia, a Uber exerce controle sobre aspectos essenciais do trabalho, como o preço das corridas e a alocação de serviços, o que é, na prática, um tipo de subordinação. 

Como “workers”, os motoristas passaram a ter direito a benefícios trabalhistas básicos, incluindo salário mínimo por hora, férias remuneradas e contribuições para pensões. Para a Suprema Corte britânica, os motoristas devem ser considerados “workers” desde o momento em que se conectam ao aplicativo, e não apenas durante as corridas, o que aumentou a responsabilidade da Uber para com eles. A decisão obrigou a plataforma a revisar seu modelo de negócios no Reino Unido, resultando em compensações financeiras retroativas e ajustes para se adequar à nova regulamentação. 

Também houve, lá fora, a experiência de obrigar as plataformas a reconhecer trabalhadores como empregados. A Lei Rider, implementada na Espanha em 2021, determina que entregadores e motoristas têm direito a todos os benefícios trabalhistas previstos pela legislação espanhola, incluindo férias remuneradas, seguro-desemprego e contribuições previdenciárias. Além disso, pela lei, as plataformas são obrigadas a maior transparência sobre os algoritmos usados para controlar e avaliar os trabalhadores.

As consequências foram imediatas: enquanto plataformas como Uber Eats e Glovo tentaram adaptar seus modelos, empresas como Deliveroo decidiram encerrar suas operações na Espanha, alegando inviabilidade econômica diante do aumento de custos. Por outro lado, algumas plataformas adotaram estratégias para contornar a legislação, como subcontratar entregadores por meio de cooperativas, o que gerou novos desafios para a fiscalização e debates sobre possíveis lacunas na lei.

Já o estado norte-americano da Califórnia tentou ‘personalizar’ uma lei para trabalhadores de apps em 2019. A legislação adotou o teste ABC, que determina que um trabalhador deve ser classificado como empregado, e não como autônomo, caso não cumpra simultaneamente três condições: (A) operar sem controle direto da empresa, (B) realizar atividades que não sejam parte do núcleo do negócio da empresa e (C) manter uma ocupação ou empresa independente no setor.

Essa mudança, na prática, obrigaria plataformas digitais a reconhecer trabalhadores como empregados, concedendo-lhes direitos como salário mínimo, horas extras e benefícios. Em resposta, as empresas financiaram o plebiscito Proposição 22 em 2020, revertendo parcialmente a aplicação da lei para motoristas e entregadores. A Proposição 22 estabeleceu uma nova categoria de trabalhadores, garantindo apenas benefícios limitados.

Quem paga a conta

Apesar de uma tendência mundial, a uberização do trabalho tem algumas particularidades no Brasil. Uma delas é que sua ascensão coincidiu com a crise econômica brasileira entre 2015 e 2016, quando o PIB teve uma contração acumulada de 7% e o desemprego, que antes da recessão tinha uma de suas baixas históricas, a 6,8%, e atingiu o pico de 12,7% em 2017. A situação econômica empurrou a mão-de-obra para a informalidade, incluindo para os apps.

A fragilidade econômica desses trabalhadores permanece mesmo depois da recessão. De acordo com o estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a remuneração média dos trabalhadores de entrega é de R$ 1.325,00, quase 40% menos do que a dos demais trabalhadores (R$ 2.166,00). Além disso, de acordo com uma pesquisa do IBGE de outubro de 2023, apenas 35,7% dos trabalhadores que prestam serviços por aplicativos contribuem para a Previdência Social. Esse percentual é quase metade dos 61,3% observados entre os demais trabalhadores do setor privado, sejam formais ou informais. 

No caso da pejotização, que também está em discussão no STF em reclamações constitucionais individuais, o impacto vai além da Previdência. Segundo estudo da Fundação Getulio Vargas (FGV), se todos os trabalhadores PJ que atuaram por conta própria após a promulgação da reforma trabalhista tivessem sido contratados como celetistas, a arrecadação poderia ter aumentado em pelo menos R$ 144 bilhões entre 2018 e 2023. Uma projeção do estudo indica que, na hipótese de a pejotização avançar e 50% da força de trabalho com carteira assinada passe a atuar nesta modalidade, a perda arrecadatória seria de R$ 384 bilhões – que corresponde a 16,6% da arrecadação federal do ano passado.

Além disso, a ausência de contribuição para a Previdência Social, por exemplo, não impacta apenas as perspectivas de aposentadoria dos trabalhadores, mas o próprio sistema brasileiro, que vive um momento de particular incerteza. A reforma da Previdência de 2019, que visava dar mais sustentabilidade às pensões, não foi suficiente, e já se fala em uma nova reforma ampla. Na semana passada, o governo anunciou novas medidas focadas na previdência de militares, por exemplo. Isso porque a perda do bônus demográfico brasileiro e o envelhecimento da população significa que, nas próximas décadas, mais pessoas estarão recebendo aposentadoria do que trabalhando para pagar as pensões. 

Em contratos de carteira assinada, as empresas pagam de 7,5% a 14% dos salários dos empregados para o INSS. Já para os MEIs, os depósitos são 5% do salário mínimo, pagos apenas por eles mesmos, sem contrapartida dos contratantes. Segundo um estudo do Ipea, o regime dos MEIs pode gerar um déficit de R$ 600 bilhões para os cofres do INSS até 2060. Embora não existam estimativas sobre o impacto da ausência de contribuição dos trabalhadores de aplicativos para o INSS, o aumento desse grupo representa mais uma vulnerabilidade para a sustentabilidade da Previdência.

O juiz do Trabalho Guilherme Feliciano, professor da Faculdade de Direito da USP e conselheiro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), vê com bons olhos a redação da repercussão geral do Tema 1291: “Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 1º, IV; 5º, II, XIII; e 170, IV, da Constituição Federal, a possibilidade do reconhecimento de vínculo de emprego entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa criadora e administradora da plataforma digital intermediadora”. Para ele, o trecho “a possibilidade de reconhecimento” parece afastar “teses extremas”.

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