O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), afirmou que a invasão dos Três Poderes, em Brasília, no dia 8 de Janeiro de 2023, demonstrou a “total falência” do sistema de autorregulação de todas as big techs. “É faticamente impossível defender, após o 8 de Janeiro, que o sistema de autorregulação funciona. Falência total e absoluta, instrumentalização e, lamentavelmente, parte de conivência (das redes)”, declarou, nesta quinta-feira (28/11), durante julgamento sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet pela Suprema Corte. Ele deu como exemplo a “Festa da Selma”, código usado nas redes sociais, principalmente, grupos de Whatsapp, por extremistas como um chamado para os atos de 2023.
Moraes disse que, com a declaração, não estava “adiantando seu voto”. O ministro, no entanto, reforçou sua opinião de que a autorregulamentação “não funcionou” e teria “se escondido atrás” do artigo 19. A norma, discutida no plenário da Corte desde a quarta-feira (27/11), exime as plataformas provedoras de internet da responsabilidade por conteúdos postados por terceiros, ou seja, seus usuários. Para Moraes, este é “o julgamento mais importante do ano”.
Embora tenha negado a antecipação do seu posicionamento, o ministro deu sinais de uma decisão propensa à inconstitucionalidade da norma. “O contexto não mudou praticamente nada em relação ao que já vínhamos percebendo dos autos e das manifestações públicas de ministros. Eles parecem bastante inclinados a declarar a inconstitucionalidade ou, pelo menos, considerar alguma questão que esbarra na constitucionalidade do artigo”, diz o advogado especialista em direito digital Marcelo Crespo, coordenador do curso de direito da ESPM.
Nesta quinta-feira, o ministro Dias Toffoli iniciou a leitura de seu voto, mas não o concluiu. Ele é o relator do Recurso Extraordinário (RE) 1037396, que trata do caso de uma dona de casa que acionou a Justiça contra o Facebook por um perfil falso.
Para ele, a previsão de que as redes só tenham responsabilidade civil sobre as publicações após ordem judicial torna o dispositivo “burocrático”. O ministro disse que há uma obsolescência da normativa, pois há casos em que a burocracia se mantém mesmo depois de algum tipo de determinação da Justiça.
“Toffoli foi bem crítico ao regime de responsabilidade civil do Marco Civil da Internet. Tratou o artigo 19 como uma espécie de relíquia legal. Quando disse que 10 anos de internet são como um século, disse que o artigo 10 já estaria obsoleto”, analisa o mestre em Direito por Harvard e pesquisador no Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITS Rio), João Vitor Archegas.
Para o especialista, o tom crítico de Toffoli deve indicar uma opção pela inconstitucionalidade da norma ou pelo caminho da interpretação conforme – estratégia jurídica que busca adaptar o texto de uma lei para que esteja em harmonia com a Constituição.
Também está na pauta o RE 1057258, que trata de professora que pediu à extinta rede Orkut que derrubasse uma comunidade ofensiva e tem Luiz Fux como relator. O advogado Felipe Leoni Carteiro, sócio de direito digital do escritório Rayes & Fagundes Advogados Associados, considera que parecer do ministro será um voto-chave para o caso.
Diferentemente de Toffoli, que indagou mais frequentemente alguns advogados, Fux permaneceu em silêncio durante grande parte das sessões. Segundo o advogado, ao contrário de ministros que, em comentários, já demonstraram inclinações para sobre o tema, como Moraes, Luis Roberto Barroso e Cármen Lúcia, Fux nunca manteve uma posição clara e pode ter mudado de entendimento depois das sustentações. Além disso, em seu parecer adotou uma abordagem mais técnica sobre o tema.
Para a advogada Luiza Foffano, especialista da área Cível do escritório Finocchio & Ustra, embora haja uma tendência da Corte para a inconstitucionalidade do artigo, ainda é cedo para prever um resultado. “Esse julgamento vai ser um divisor de águas, as discussões têm sido bem amplas pela complexidade do assunto, mas estamos ainda no começo”, diz.
Como foi o 2º dia de julgamento
Nas sustentações desta quinta-feira, o Facebook voltou a se manifestar. A rede afirmou que adotar regime de notificação extrajudicial prévia, como defendido por atores que pedem alterações no artigo 19, seria muito complexo. “Se vigente o sistema de notificação prévia, o que as plataformas deveriam fazer ao receberem notificações extrajudiciais?”, questionou Patrícia Helena Marta Martins, advogada da big tech. “Elas deveriam já ter fiscalizado, ou colher evidências, deveriam simplesmente atender a notificação para não se sujeitarem a pedido de indenização, ou não remover e aguardar o pedido de indenização?”, completou,
No primeiro dia do julgamento, a empresa, representada pelo advogado José Rollemberg Leite, disse que, à época das reclamações do caso RE 1.057.258 (tema 933), a big tech não tinha como saber se quem pedia a remoção do perfil falso era, na verdade, a pessoa verdadeira. A declaração foi rebatida neste segundo dia por Toffoli, que disse que a dúvida é “uma falácia”.
Já a Advocacia-Geral da União (AGU) recuou da defesa de interpretação conforme e pediu a inconstitucionalidade do artigo 19. Antes, em audiência pública realizada no ano passado, o governo argumentava pela interpretação conforme. O advogado-geral da União, Jorge Messias, justificou a mudança de posição citando os ataques de 8 de Janeiro e a disseminação de desinformação durante a pandemia. Para ele, o julgamento no STF se trata da “sobrevivência do Estado Democrático de Direito”.
A presença frequente do 8 de Janeiro em menções, mostra, conforme o advogado Marcelo Crespo, que a decisão do Supremo deve ir além do Marco Civil da Internet e considerar outras questões recentes da política brasileira. “No final do dia, o que se está sendo decidido não é só a constitucionalidade ou inconstitucionalidade do artigo, mas todo um contexto, como o 8 de Janeiro e outras situações”, afirma.