Linguagem é poder e o processo de interpretação da Constituição está intimamente ligado à linguagem e ao poder. Afinal, o sentido que se dá às normas fundamentais do Estado tem impacto direto na vida de todos os indivíduos sujeitos à sua soberania.
Nesse jogo de poder hermenêutico e discursivo, os poderes do Estado possuem papéis constitucionais razoavelmente bem delimitados pela CF/88, com algumas zonas de penumbra normativa, como diria Hart.[1] E é nessas zonas cinzentas que o jogo hermenêutico se acirra e a disputa entre os poderes do Estado por espaços de poder aquece.
Linguagem é poder e o processo de interpretação da Constituição está intimamente ligado à linguagem e ao poder. Afinal, o sentido que se dá às normas fundamentais do Estado tem impacto direto na vida de todos os indivíduos sujeitos à sua soberania.
Nesse jogo de poder hermenêutico e discursivo, os poderes do Estado possuem papéis constitucionais razoavelmente bem delimitados pela CF/88, com algumas zonas de penumbra normativa, como diria Hart.[1] E é nessas zonas cinzentas que o jogo hermenêutico se acirra e a disputa entre os poderes do Estado por espaços de poder aquece.
Feita a observação inicial, importa notar que tramitam no Congresso Nacional a PEC 8/2021 e a PEC 28/2024, chamadas “carinhosamente” e estrategicamente por opositores do pacote anti-STF[2]. Assim foi definida a ação legislativa: “É descabido, além de flagrantemente inconstitucional, o pacote sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovado na quarta-feira pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara”.[3]
A interpretação acima é uma das possibilidades e aparenta ser um discurso de reserva de poder. Porém, o design constitucional de 1988 autoriza outras leituras menos pessimistas sobre a PEC 28/2024, que será o foco desta reflexão.
Estabelece a respectiva PEC que “nas decisões do Supremo Tribunal Federal, no exercício da jurisdição constitucional em caráter concreto ou abstrato, se o Congresso Nacional considerar que a decisão exorbita do adequado exercício da função jurisdicional e inova o ordenamento jurídico como norma geral e abstrata, poderá sustar os seus efeitos pelo voto de dois terços dos membros de cada uma de suas Casas Legislativas, pelo prazo de dois anos, prorrogável uma única vez por igual período”.
Ao final, propõe que em caso de utilização da prerrogativa prevista no § 4º, o Supremo Tribunal Federal somente poderá manter a sua decisão pelo voto de quatro quintos de seus membros”.
Vejamos os pontos centrais que chamaram a nossa atenção hermenêutica. Já adiantamos que não identificamos inconstitucionalidade, nem velada, muito menos flagrante. Pelo menos não no estágio atual das reflexões que, obviamente, estarão sujeitas ao necessário e enriquecedor crivo dos argumentos jurídicos devidamente fundamentados no desenho constitucional de 1988.
O que alguns chamam de revanchismo e de ataque institucional chamamos de exercício regular e democrático de uma das funções típicas do Legislativo no exercício de suas atribuições constitucionais.
Gostando ou não da atuação institucional do legislador brasileiro, das suas deficiências políticas, morais e até mesmo legais, a PEC 28 não parece ser um exercício arbitrário das suas prerrogativas institucionais ou mesmo uma tentativa de submissão ou de captura do STF. Isso porque, ao fim e ao cabo, a última palavra continua a ser do STF, conforme a parte final da PEC sob análise. Vejamos as razões que justificam nossa leitura.
A PEC 28 direciona a reação legislativa apenas para as situações onde o STF atuará como Corte Constitucional ao estabelecer “nas decisões do Supremo Tribunal Federal, no exercício da jurisdição constitucional”. Não se identifica uma ameaça à atuação do STF como Suprema Corte e ao exercício da jurisdição regular que não envolve as grandes polêmicas constitucionais.
O ponto mais sensível da PEC 28 é o trecho “se o Congresso Nacional considerar que a decisão exorbita do adequado exercício da função jurisdicional e inova o ordenamento jurídico como norma geral e abstrata”. Pode-se alegar que seria muito poder dado ao legislador para barrar a função contramajoritária do STF. Será mesmo?
Na justificativa da PEC 28 apresentada pelo deputado Reinhold Stephanes (PSD-PR), expõe-se que “a nova regra proposta […] em boa medida, apenas alonga regra constitucional já prevista na Constituição Federal de 1988, especificamente no art. 49, com a possiblidade de o Supremo Tribunal Federal também sustar a deliberação da Casa Legislativa, o que bem pondera núcleo essencial da separação de Poderes, freios e contrapesos”.[4]
No art. 49, V, da CF/88, o constituinte originário estabeleceu que é competência exclusiva do Congresso Nacional sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa. Percebam: o constituinte originário estabeleceu que o Legislativo pode fazer avaliações sobre eventuais excessos de outro poder na esfera normativa, que é típica função do legislador.
Pode-se alegar que o constituinte originário não fez o mesmo em relação ao Judiciário e que seria um silêncio eloquente. Podem. Porém, ao nosso sentir hermenêutico, tal entendimento não é coerente com a realidade constitucional brasileira. Explicamos.
A norma originária insculpida no 49, V, da CF/88, é voltada para combater a maior ameaça ao Legislativo brasileiro até então, ou seja: o Executivo. Lembremos que a CF/88 é resultado das lutas contra a ditadura e o Judiciário não havia assumido o protagonismo político dos dias atuais.
E o constituinte derivado reformador pode “tocar” na sistemática de freios e contrapesos? Claro que pode, desde que não tenda a abolir a cláusula pétrea da separação de poderes. Não há reserva de poder para o constituinte originário nessa matéria. O que há é apenas reserva de Constituição.
Convenhamos, a tirar pelos últimos anos, quem tem avançado para o campo de atuação de outros poderes e afetado na essência a separação de poderes é o Judiciário, não o Legislativo.
Quando o ministro Gilmar Mendes defende a via informal de mudança da Constituição por meio da suposta mutação constitucional do 52, X , CF/88, propondo que o Senado tenha – em nossa leitura – um papel de “Diário Oficial” de algumas decisões do STF em sede de controle difuso[5]; quando o STF realiza uma interpretação heterodoxa e manda prender parlamentar federal fora das hipóteses constitucionais (sem flagrante delito de crime inafiançável)[6]; quando cria tipos penais pretorianos (vide ADO 26 e MI 4733)[7] ou avança em pautas morais sensíveis como aborto, política de drogas, etc. – todos em campo de atuação típico do Legislativo – não vemos os “paladinos” contextuais da separação de poderes levantarem suas vozes contra tais avanços.
Assim sendo, quando o STF avança para o campo de atuação típico do legislador é contramajoritário e constitucional, mas quando o legislador reage na defesa de suas prerrogativas institucionais é inconstitucional e abusivo? Afinal, qual o parâmetro? A afinidade com o resultado político ou com o texto constitucional? E não se diga que o respeito ao texto constitucional é ser exegético.
Que os juízes criam Direito no contexto da sua aplicação já é sabido há muito tempo, como o próprio Carlos Maximiliano já nos ensina em sua obra há décadas[8]. Porém, ainda sim, essa possibilidade não autoriza os juízes a expandir sua jurisdição e invadir campos que são constitucionalmente atribuídos ao Legislativo.
No atual contexto, parece-nos, a importante função contramajoritária dos tribunais tem sido utilizada como um artifício político retórico para justificar o avanço da jurisdição constitucional em pautas políticas e morais, cujo desfecho favorece determinados segmentos políticos em detrimento de outros.
Mais do que defesa dos direitos fundamentais, tem ocorrido um direcionamento da ação política para a via judicial e as críticas a essa ação têm sido colocadas como um ataque à função contramajoritária da Corte. Porém, é preciso separar bem as coisas.
É preciso separar a relevantíssima ação do Judiciário na defesa e promoção dos direitos fundamentais, da situação em que ele avança para o exercício de funções típicas de outros poderes, decidindo sobre questões que são de natureza essencialmente política, moral, cultural e não jurisdicional.
O STF continua um ator central na interpretação constitucional e na defesa da democracia. Esse papel relevante não está ameaçado pela PEC 28. O que PEC faz é compor um conjunto de poderes do Legislativo visando assegurar suas prerrogativas institucionais, complementando a ideia inicialmente prevista pelo constituinte originário no art. 49, V, da CF/88 e na sistemática de freios e contrapesos.
Assim, ao estabelecer o art. 49, V, o constituinte originário olhava para o retrovisor com preocupação no que se refere às ações autoritárias do Executivo (ditadura). Com a PEC 28, o constituinte derivado reformador olha para o passado recente, para o presente e para o futuro próximo reafirmando o que o constituinte originário lhe incumbiu: a função típica de criar normas gerais e abstratas e de decidir sobre as questões que são de natureza essencialmente política ou moral.
Por isso, no atual estado da arte, a leitura constitucional que propomos da PEC 28 é que ela vai compor esse quadro de prerrogativas do Legislativo sem comprometer a sistemática de checks and balances estabelecida pelo constituinte originário.
O legislador reformador fortalece a sistemática de freios e contrapesos na direção do Congresso Nacional, mas o faz respeitando os procedimentos democráticos, formais e materiais de alteração da CF/88, a ideia da colegialidade qualificada e a posição de guardião da constituição do STF.
A referida PEC afirma que, para sustar os efeitos da decisão do STF, o Legislativo deverá fazê-lo pelo “voto de dois terços dos membros de cada uma de suas Casas”. Não bastasse isso, a suspensão será temporária, apenas pelo “prazo de dois anos, prorrogável uma única vez por igual período”. E arremata estabelecendo que “em caso de utilização da prerrogativa o Supremo Tribunal Federal poderá manter a sua decisão pelo voto de quatro quintos de seus membros”.
É possível que se alegue que esse quórum, digamos, “ultraqualificado”, favorece a captura da Corte. Porém, em uma interpretação histórica, sistemática e lógica[9], o que se enxerga é um contexto de reação legislativa, não de ataque institucional ou tentativa de captura da Corte. Isso porque, em último caso, a Corte decidirá internamente se derruba ou não a interpretação constitucional dada pelo legislador.
Assim, mais do que um ataque à função jurisdicional e contramajoritária do STF, a PEC 28 é um exercício regular dos diálogos institucionais[10] e da ideia de sociedade aberta dos intérpretes da Constituição[11], uma vez que o STF não detém nem o monopólio e nem a soberania sobre a interpretação constitucional.