Controle judicial e democracia aos 36 anos da Constituição Cidadã

Crédito: Jamile Ferraris/MJSP

Ainda em 2008, em artigo intitulado “20 anos da Constituição: o avanço da democracia”, observava que a Constituição de 1988 permitira uma estabilidade institucional sem precedentes no país.[1]

Quase 20 anos mais tarde, tal estabilidade foi largamente naturalizada, mas nem por isso devemos deixar de celebrá-la. Naquela ocasião, anotava que era ela resultado do equilíbrio entre forças nem sempre paritárias na história brasileira, notadamente, a atividade congressual, o cotidiano esforço executivo, a independência do Ministério Público, a liberdade de imprensa e, com destaque, a independência do Poder Judiciário.

O destaque era merecido: a interação entre essas instituições natural e salutarmente gera controvérsias, típicas de regimes democráticos, cuja resolução foi confiada pela Constituição vigente ao Judiciário, mormente ao seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal.

Essa consideração é especialmente relevante no contexto atual, em que assistimos à degeneração dessa interação e consequente produção de controvérsias teratológicas no âmago do Estado brasileiro – assim entendidas as que questionam garantias constitucionais que tantos anos depois julgávamos seguras, como o princípio democrático e o catálogo dos direitos fundamentais.

A situação é de tal monta que não parece exagerado dividir a atuação do Supremo Tribunal Federal em prol da democracia em duas fases. Na primeira encontram-se decisões que deram concretude ao complexo sistema de direitos projetado pela Carta de 1988, enfrentando casos de importância histórica como a legitimação de políticas afirmativas, mormente no acesso ao ensino superior[2], o reconhecimento da união homoafetiva como entidade familiar,[3] a descriminalização da interrupção de gravidez em casos de anencefalia fetal,[4] a reforma do sistema prisional[5] e pesquisa científica envolvendo células-tronco humanas.[6]

Na segunda fase, a agenda da Corte passa a ser pautada por questões de natureza estrutural e funcional do sistema político-eleitoral, como a legalidade de impeachment de presidente da República,[7] o desvirtuamento político de investigações criminais como a Lava Jato,[8] a divulgação de notícias fraudulentas (fake news) sobre o Supremo Tribunal Federal e seus membros,[9] a autonomia de governos locais perante a União no enfrentamento à Covid-19 [10] e, destacadamente, a licitude do dito “orçamento secreto”, isto é, o uso de emendas parlamentares de relator para incluir novas despesas no projeto de lei orçamentária da União.[11]

Aqui o leitor notará um aparente paradoxo. Se, de um lado, na primeira fase se observa o fortalecimento da Corte Constitucional à altura da missão confiada pelo texto de 1988, o que inclui e.g. a admissão de variantes decisórias no controle concentrado de constitucionalidade e a objetivação do controle difuso, muito por trabalho legislativo, é na segunda fase que brados contra um suposto “ativismo judicial” da Corte Constitucional ganham força. E não se cuida, note-se, de críticas escolásticas, mas, como se exemplificará na sequência, de propostas institucionais do próprio Parlamento, que veem no Supremo o problema – e não a solução – da crise democrática que sua agenda mais recente reflete.

A explicação para esse fenômeno, cremos, é simples, e reforça a valia da distinção acima, sobre os dois momentos da jurisdição constitucional na história moderna do país: se o primeiro pode ser descrito sob a rubrica da judicialização da política, ao menos no sentido de que omissões variadas do Executivo e Legislativo foram finalmente levadas ao escrutínio do Judiciário, o segundo revela um movimento complementar, mas não propriamente simétrico, de politização da Justiça. Em sentido estrito, ele é representado pela expectativa de que juízes, em especial os constitucionais, incorporem a missão de falar pelo povo, orientando-se pela vontade manifestada nas ruas e nas urnas.

A politização da Justiça é o reflexo da crise democrática brasileira, profunda a ponto de envolver todas as instituições citadas no início do texto, fortalecidas que foram pelo processo constituinte de 1988 na qualidade de “garantes” da almejada estabilidade institucional. De fato, nos últimos anos, diversos fatores políticos, econômicos e sociais têm dado azo ao aumento do discurso populista, sem que seja tarefa simples identificar as causas da decadência democrática no país.[12]

Com efeito, o impeachment da presidente Dilma Rousseff denota a deterioração da articulação política em um sistema de presidencialismo de coalizão, tornando insustentável o equilíbrio entre Executivo e Judiciário. O uso das chamadas emendas RP9 revela a vigência de um “parlamentarismo branco”.[13] Desponta, no período, insatisfação popular especialmente aguda, que alveja alvos diversos, mas se concentra na corrupção arraigada no sistema político.[14]

Nesse contexto, a defesa de mudanças efetivas no panorama político brasileiro passou a ser pautada pela crescente polarização da sociedade, inclusive com apoio a propostas populistas nos mais diversos ramos. Os embates internos ao pacto federalista sobre o enfrentamento da Covid-19 explicitam a indevida politização do combate a crises sanitárias.[15]

Operação Lava Jato, que em 2014 capitaneia os movimentos nas ruas, torna-se vítima de seu próprio sucesso, quando a atuação de membros do Ministério Público e do Judiciário responsáveis pelo julgamento das ações penais passa a ecoar a máxima de que a justiça deveria operar em favor da vontade popular no combate à corrupção.

A disseminação de fake news, movimento parasitário ao novo paradigma da propaganda eleitoral – que passou a se desenvolver por meio de redes sociais em detrimento do usual modelo de comunicação via rádio e TV[16]– subverte as liberdades de opinião e de imprensa ao alimentar um plano assumido de golpe de Estado, cujos primeiros passos se concretizam na (outrora inimaginável) investida contra as sedes dos Poderes da República.

Não é surpreendente que em tal contexto de polarização e populismos um Judiciário independente seja visado como inimigo. E é nesse contexto que assistimos emergir, nos últimos meses, propostas legislativas que têm no STF o alvo primeiro, e até aqui único, de alterações casuísticas do sistema constitucional.

Tome-se, como exemplo, as Propostas de Emenda à Constituição 50 e 51 de 2023, não coincidentemente sequenciais. A PEC 50/23 busca criar mandatos fixos aos ministros do STF. Tal medida diz-se amparada na experiência de outros países, mas sequer tem o cuidado de avaliar seus contextos institucionais – o que, dentre outras questões, teria certamente esbarrado na observação primária de que aquelas com mandatos são paradigmaticamente Cortes Constitucionais estritas, isto é, órgãos que não pertencem à estrutura do Poder Judiciário como o STF, e por tal razão não aproveitam da vitaliciedade típica dos seus membros.

Já a PEC 51/23, em salto ainda mais desvairado, permite ao Congresso a sustação de atos normativos do Judiciário, em especial de seu órgão de cúpula, que, na visão dos parlamentares, invadam a competência dos demais Poderes da República. Aqui sobram assombros. Além da insegurança jurídica sem precedentes lançada sobre decisões judiciais, a proposta, no ponto crucial, inverte a lógica de controle contramajoritário instituída pela Constituição, que confiou sua guarda a órgão que, por sua consciente opção, mereceu estrutura alheia à representação popular (e consequentemente mais resguardada dos influxos partidários e populares) e afeita ao exame técnico do texto constitucional.

É de se questionar, pois, se dessas alterações no texto ainda resta uma Constituição. Nesse diapasão, sacramentais as palavras do ex-juiz do Tribunal Constitucional Federal Alemão, Professor Emérito Dieter Grimm: “(q)uem não aceita que uma decisão democraticamente adotada se submeta a exame de constitucionalidade pelo Judiciário, terá que rejeitar a jurisdição constitucional como um todo; e também precisa estar preparado para pagar o preço da irrelevância prática da Constituição para o jogo político. O direito constitucional não se impõe sozinho, e, quando o seu cumprimento é confiado àqueles aos quais ele se dirige, é o Direito que quase sempre fica em desvantagem”.[17]

Disso não segue, é evidente, que o Supremo Tribunal Federal esteja a fugir do muito bem-vindo diálogo institucional com o Parlamento, diante de supostas preocupações com sua margem de ação decisória. Entretanto, as PECs mencionadas não são prospectivas desse diálogo; antes, querem silenciá-lo, ao excluir desde sua gênese a participação do órgão objeto da moderação.

Rememorando aquele artigo de 2008, à guisa de conclusão, pondero que, se aos 20 anos da Constituição celebrávamos o avanço da democracia, aos 36 lastimamos seu retrocesso. Isso não infirma, todavia, mas confirma as palavras finais lançadas naquela oportunidade: “no Estado constitucional, a independência judicial é mais relevante do que o próprio catálogo de direitos fundamentais”.[18]


[1]   MENDES, Gilmar Ferreira. 20 anos de Constituição: o avanço da democracia. Constituição de 1988: o Brasil 20 anos depois. Brasília: Senado Federal, Instituto Legislativo Brasileiro, 2008. p. 20-24, v. 1

[2]   STF, Tribunal Pleno. ADC nº 41. Rel. Min. Roberto Barroso.DJe, 16 ago. 2017. No mesmo sentido: STF, Tribunal Pleno. ADPF nº 186. Rel. Min. Ricardo Lewandowski.DJe, 17 out. 2014.

[3]   BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277 e Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132. Relator: Min. Ayres Britto. Brasília, DF, 05 de maio de 2011 e BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Relator: Min. Marco Aurélio. Brasília, DF, 12 de abril de 2012.

[4]   BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 54. Relator: Min. Marco Aurélio. Brasília, DF, 12 de abril de 2012.

[5]   Na oportunidade, o Supremo Tribunal Federal determinou uma série de obrigações ao Poder Executivo e ao Judiciário tendo em vista o “quadro de violação massiva e persistente de direitos fundamentais” no âmbito do sistema prisional brasileiro, caracterizado pela Corte como “estado de coisas inconstitucional” (STF, Tribunal Pleno. Medida Cautelar na ADPF nº 347. Rel. Min. Marco Aurélio.DJe, 18 fev. 2016).

[6]   STF, Tribunal Pleno. ADI nº 3.510. Rel. Min. Ayres Britto.DJe, 28 maio 2013.

[7]   O Plenário do Supremo Tribunal Federal analisou a questão em duas decisões principais, a saber: STF, Tribunal Pleno. Medida Cautelar na ADPF nº 378. Rel. Min. Edson Fachin, Rel. p/ Acórdão Min. Roberto Barroso.DJe, 3 ago. 2016; STF, Tribunal Pleno. Medida Cautelar na ADI nº 5.498. Rel. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ Acórdão Min. Teori Zavascki.DJe, 10 maio 2017. Outras importantes decisões também analisaram o tema: STF, Tribunal Pleno. Medida Cautelar no MS nº 34.127. Rel. Min. Roberto Barroso, Rel. p/ Acórdão Min. Teori Zavascki.DJe, 10 out. 2016; STF, Tribunal Pleno. Medida Cautelar no MS nº 34.130. Rel. Min. Edson Fachin.DJe, 31 ago. 2016; STF, Tribunal Pleno. Medida Cautelar no MS nº 34.131. Rel. Min. Edson Fachin.DJe, 9 maio 2016.

[8]   BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Petição nº 12.357. Relator: Min. Dias Toffoli. Brasília, DF, 13 de outubro de 2022; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 193.726. Relator: Min. Edson Fachin. Brasília, DF, 15 de abril de 2021 e BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 164.493. Relator: Min. Edson Fachin. Brasília, DF, 23 de março de 2021.

[9] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Inquérito nº 4.781. Relator: Min. Alexandre de Moraes. Brasília, DF, 14 de março de 20192.

[10]  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.341. Relator: Min. Marco Aurélio. Brasília, DF, 15 de abril de 2020;

[11]  BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 850. Relatora: Min. Rosa Weber. Brasília, DF, 10 de junho de 2021; BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 851. Relatora: Min. Rosa Weber. Brasília, DF, 14 de junho de 2021; . BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 854. Relatora: Min. Rosa Weber. Brasília, DF, 05 de julho de 2021 e BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 1014. Relatora: Min. Rosa Weber. Brasília, DF, 15 de dezembro de 2022.

[12]  Como bem destaca Tom Daly: “At every turn, the Brazilian context reminds us that identifying democratic decay is difficult, that assessments cannot be based on superficial analysis, and that what democracy means, and who ‘owns’ the democratic system, are far from settled questions” (DALY, Tom Gerald. Populism, public law, and democratic decay in Brazil: understanding the rise of Jair Bolsonaro.Law and Ethics of Human Rights (LEHR) Journal, p. 1-22, 2019. p. 8).

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