No debate da TV Bandeirantes do último dia 9 de agosto, o candidato à Prefeitura de São Paulo Pablo Marçal (PRTB) anunciava para quem iria sua próxima pergunta: “A pergunta vai para o…”.
Então, fez um gesto que insinuava o ato de cheirar cocaína e disse o nome do seu oponente, o candidato Guilherme Boulos (PSOL). Dias depois, em 15 de agosto, o Ministério Público Eleitoral mandou a Polícia Federal investigar Marçal por calúnia, difamação e divulgação de fatos inverídicos sobre outros candidatos[1].
A pergunta óbvia: candidatos têm carta branca para dizer (ou gesticular) o que quiserem durante a campanha eleitoral? Noutras palavras: o calor da disputa de ideias na campanha suspende a proteção da honra individual? Algo próximo a uma imunidade pré-parlamentar?
O período eleitoral não suspende, mas, na prática, muda a natureza da proteção à honra individual. Os crimes eleitorais contra a honra têm previsão específica. Ao descrever os crimes eleitorais contra a honra, o Código Eleitoral usa a mesma redação do Código Penal (arts. 138, 139 e 140 do CP), mas com o acréscimo da locução “na propaganda eleitoral, ou visando fins de propaganda” (arts. 324, 325 e 326 do Código Eleitoral). Este, portanto, é o elemento típico que distingue tais delitos daqueles previstos no Código Penal.
Por exemplo:
Código Penal | Código Eleitoral |
Art. 138 – Caluniar alguém, imputando-lhe falsamente fato definido como crime. | Art. 324 – Caluniar alguém, na propaganda eleitoral, ou visando fins de propaganda, imputando-lhe falsamente fato definido como crime. |
As diferenças entre as esferas eleitoral-penal e penal. Fora algumas agravantes específicas, as penas dos tipos eleitorais não diferem daquelas do Código Penal. As duas grandes diferenças da tipificação eleitoral residem: (i) na competência e (ii) na natureza da ação penal.
Competência. A competência para julgar as ações relativas a crimes eleitorais contra a honra é da justiça eleitoral; em geral, mais célere do que a comum, pois precisa reagir o mais rápido possível para proteger o processo eleitoral em curso.
Natureza da ação. A natureza da ação penal nos crimes comuns contra a honra é privada; dos eleitorais-penais, é pública incondicionada. A diferença é notável, pois a ação penal privada se submete a um exíguo prazo decadencial e a ação penal pública ao prazo prescricional.
Concretamente: um candidato profere uma calúnia pública contra o outro no dia 9 de agosto de 2024. No crime comum contra a honra, o prazo decadencial para iniciar uma ação privada é de 6 meses[2], ou seja, até 9 de fevereiro de 2025.
No crime eleitoral do art. 324, por exemplo, a ação é pública incondicionada, sem prazo decadencial, e o prazo prescricional em abstrato para a propositura da ação penal é de 4 anos.[3] Ou seja, o Ministério Público teria até 9 de agosto de 2028 para iniciar a ação penal.
As diferenças são relevantes. Mas o que significa a locução do Código Eleitoral “na propaganda eleitoral, ou visando fins de propaganda”, que atrai a tutela penal-eleitoral?
“Na propaganda eleitoral (…)”. Quando a ofensa é proferida durante o horário eleitoral gratuito, que é o espaço imposto por lei às emissoras de rádio e televisão, reservado aos candidatos, o Código Eleitoral não deixa dúvidas. Se a ofensa for proferida “na propaganda eleitoral”, estaremos no campo penal eleitoral. É um dado claro, objetivo.
“(…) visando fins de propaganda”. Já a locução “visando fins de propaganda” é mais ampla e alcança também entrevistas[4], postagens nas redes sociais[5] ou debates na TV. É um dado subjetivo. Mesmo tendo previsão autônoma, os crimes contra a honra eleitorais não são especiais ou próprios. Eles podem ser cometidos por qualquer pessoa, incluindo eleitores, jornalistas e até mesmo políticos já eleitos. E o polo passivo também é livre, aplicando-se as mesmas regras jurisprudenciais dos crimes contra a honra comuns – o sujeito ofendido não precisa ser nomeado, basta ser identificável.[6] Por exemplo, a troca de acusações mentirosas entre dois empresários em um programa ao vivo a rigor também poderia entrar no crivo da justiça eleitoral.
Conteúdo da fala. Um exemplo recorrente é o candidato que chama o outro de “ladrão”. O termo “ladrão” é um exemplo de manual[7] dos crimes contra a honra e um clássico da jurisprudência, tanto comum[8] quanto eleitoral.
Na eleitoral, durante a última eleição presidencial, em 2022, os ministros do TSE referendaram liminar e decidiram, em votação unânime, manter fora do ar propaganda eleitoral do então candidato Jair Bolsonaro (PL) que atribuía ao então candidato Lula (PT) os termos “corrupto” e “ladrão”.
Na decisão, o ministro Paulo de Tarso entendeu que “não poderia a Justiça especializada permitir que os partidos políticos, coligação e candidatos participantes do pleito deixassem de observar direitos e garantias constitucionais do cidadão (…), utilizando-se como justificativa a liberdade de expressão para realizar imputações que, em tese, podem caracterizar CRIME de CALÚNIA, INJÚRIA ou DIFAMAÇÃO ou que não observem a garantia constitucional da presunção de inocência”.[9] E isso vale também para insinuações de que o candidato “faz parte de uma quadrilha”[10] ou de que (…) “roubou (…) da prefeitura para campanha política”.[11]
Bem jurídico. A tutela da norma penal-eleitoral é plúrima: dirige-se à honra do cidadão ofendido e ainda à integridade do processo eleitoral[12]. Para o professor Fávila Ribeiro, “as increpações infundadas e a ausência de prontos corretivos determinam fatalmente a generalização das ofensas, acarretando queda no nível da campanha eleitoral e descrédito para o regime político”[13].
Esse risco da “generalização das ofensas” de que fala Ribeiro poderia se concretizar de diferentes formas, seja afastando bons candidatos em potencial da eleição, que deixam de concorrer para resguardar sua honra individual, seja fazendo com que os eleitores percam o interesse ou a confiança no processo eleitoral, agora palco de disputas pessoais e narrativas descoladas da realidade do país.
Ao mesmo tempo, a censura penal do discurso ganha aqui uma ressalva a mais. Um “tiozinho das fake news” sozinho não oferece risco de “descrédito para o regime político”, mas junto com outros milhares ou milhões de “tiozinhos” talvez aí sim – algo como uma lesão cumulativa[14]. Mas cada voz censurada ou reprimida na eleição é uma voz a menos no processo democrático, que se legitima também pela participação popular nos processos que a constituem.[15]
A jurisprudência do TSE é pacífica no sentido de que a livre manifestação do pensamento não encerra um direito de caráter absoluto, nem mesmo durante as eleições.[16] Tendemos a caracterizar os crimes contra a honra sempre como uma limitação à liberdade de expressão, mas, se pensarmos bem, a tutela penal da honra não tutela outra liberdade.
A expressão nunca é isolada, é dialógica e pressupõe o outro. Logo, liberdade de expressão também é a possibilidade de se expressar sem medo, em um ambiente livre de respostas injuriosas, caluniosas ou difamatórias. A garantia do bom diálogo, um diálogo cívico, é a verdadeira expressão do processo eleitoral em uma democracia.
[1]Disponível em:Ministério Público Eleitoral determina abertura de inquérito da PF para investigar Marçal por fake news contra Boulos em SP | Eleições 2024 em São Paulo | G1 (globo.com). Acesso em: 17/08/2024.
Em 13 de agosto, o Tribunal Regional Eleitoral de SP (TRE-SP) ordenou, por duas vezes, que Pablo Marçal, candidato do PRTB, removesse vídeos e postagens que insinuavam o uso de cocaína por seu adversário, Guilherme Boulos, do PSOL. O juiz considerou que ‘os vídeos possuem conteúdo unicamente difamatório, sem qualquer relevância político-eleitoral’ (Disponível em:Justiça ordena pela 2ª vez que Marçal apague insinuações sem provas contra Boulos: ‘conteúdo difamatório e sem relevância eleitoral’ | Eleições 2024 em São Paulo | G1 (globo.com). Acesso em: 17/08/2024.)
[2]Art. 103, Código Penal – Salvo disposição expressa em contrário, o ofendido decai do direito de queixa ou de representação se não o exerce dentro do prazo de 6 (seis) meses, contado do dia em que veio a saber quem é o autor do crime, ou, no caso do § 3º do art. 100 deste Código, do dia em que se esgota o prazo para oferecimento da denúncia. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)
[3]Crimes eleitorais se submetem aos mesmos prazos prescricionais do art. 109 do Código Penal, nos termos do art. 287 do Código Eleitoral. Logo, se a pena máxima do art. 324 do Código Eleitoral é de 2 anos, sua prescrição em abstrato é em 4 anos (inc. V do art. 109, CP), a contar do momento em que o ofendido toma ciência da ofensa, ou seja, de quando o crime se consumou (art. 111, inc. I, CP).
[4]“…as eleições constituem fato jornalístico de indiscutível relevo e a entrevista propicia aos eleitores conhecer melhor os candidatos e as ideias que apoiam” (GOMES, José Jairo. Direito Eleitoral. 16. ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 770, grifo nosso).
“…Denúncia. Crimes contra a honra. ENTREVISTA televisiva. Mídia. Apresentação do original. Investigação. Confirmação do conteúdo. Inexistência de ilegalidade da prova. Situação sujeita ao confronto da defesa. Cerceamento não ocorrente. Elementos de prova aptos a fundamentar a proposição penal. 1. Não se mostra inepta a denúncia que se baseia em elementos de prova produzidos pela fase investigatória, em face dos quais se demonstrou existir, em tese, condutas penalmente relevantes em torno dos crimes de calúnia e difamação. 2. Não há cerceamento de defesa no fato de a mídia, na qual foi gravada a entrevista do acusado com as expressões ditas ofensivas, ter sido degravada pela vítima, se o seu conteúdo original faz parte dos autos da ação penal e foi confirmado pela investigação, cujo resultado lastreou a opinião sobre o delito realizada pelo órgão ministerial. 3. Inexistência de constrangimento ilegal”. (TSE, RHC n. 353.092, Rel. Min. MARIA THEREZE DE ASSIS MOURA, j. 09/12/2014, grifo nosso).
[5]“(…) no caso de referências feitas ao prefeito municipal, ao candidato que disputa a sua sucessão e à formação de coligações, demonstrando o propósito do agente de influir na propaganda eleitoral de forma negativa” (TSE, REspe n. 186.819/PR, Rel. Min. Henrique Neves da Silva, DJe, 5/11/2015).
[6]“É pressuposto dos crimes contra a honra a determinação do sujeito passivo, uma vez que a honra é atributo da pessoa, sendo ela física ou jurídica. A identificação da vítima tem de ser minimamente possível, ainda que não haja a citação nominal. (STF, PET 5.956/DF, Rel. Min. ROSA WEBER, 1ª Turma, DJe: 10/04/2018).
[7]Injúria: “emissão de conceitos negativos sobre a vítima, que atingem esses atributos pessoais, a estima própria, o juízo positivo que cada um tem de si mesmo” (Tratado de Direito Penal, Vol. 2: Parte Especial: Dos Crimes Contra a Pessoa. 19. ed., São Paulo: Saraiva, 2019, p. 455). Ainda: “Dignidade é o sentimento da própria honorabilidade ou valor social, que pode ser lesada com expressões tais como ‘bicha’, ‘ladrão’, ‘corno’ etc.” (BITENCOURT, Cezar roberto. Tratado de Direito Penal, Vol. 2. 17ª ed. São Paulo: Saraiva Jur, 2017, p. 383). Hungria também usa “ladrão” como exemplo de “palavra insultuosa, o epíteto aviltante, o xingamento, o impropério, o gesto ultrajante, todo e qualquer ato, enfim, que exprime desprezo, escárnio, ludíbrio.” (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal, Vol. IV. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 91 e 96).
[8]“Estando demonstrado nos autos ter sido o acusado quem deu início às ofensas, tendo o 1º querelante agido imediatamente em defesa de sua honra, impõe-se concluir que o querelado, ao afirmar que o 1º querelante seria um ‘vagabundo descarado’, ‘ladrão’, ‘filho da puta’, ‘marginal’ e ‘gigolô do serviço público’ incorreu repetidas vezes na prática do delito de injúria.” (STJ, APn 574/BA, Rel. Ministra ELIANA CALMON, Corte Especial, DJe: 08/11/2010).
[9] TSE, Referendo na Representação n. 0601416-76.2022.6.00.0000/DF, Rel. Min. PAULO DE TARSO SANSEVERINO, j. 20/10/2022.
[10]Segundo o TRE do Distrito Federal, insinuar que o candidato “faz parte de uma quadrilha” pode vir a caracterizar injúria, “com caráter nitidamente eleitoreiro e que configura autêntica propaganda eleitoral negativa a ele e em favor de seus opositores” (DR n. 1325, Rel. Juiz ROBERVAL CASEMIRO BELINATI, j. 18 de setembro de 2006).
[11]TRE-BA, Ação Penal Originária n. 243/BA, Relator: JAFETH EUSTÁQUIO DA SILVA, Data de Julgamento: 15/04/2002, DJe 27/04/2002, grifo nosso;
[12]STJ, CC n. 147.107, Min. Rel. JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, 3ª Seção, j. 25/11/2020.
[13]RIBEIRO, Fávila. Direito Eleitoral, 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, p. 521.
[14]ROXIN, Claus; GRECO, Luis. Strafrecht – Allgemeiner Teil, Bd. I. 5. ed. München: C.H. Beck, 2020. p. 72/73
[15]A “poliarquia” de Robert Dahl. Ver: DAHL, Robert A. A democracia e seus críticos. São Paulo: Martins Fontes, 1997. p. 35.
[16]“A livre manifestação do pensamento não encerra um direito de caráter absoluto, de forma que ofensas pessoais direcionadas a atingir a imagem dos candidatos e a comprometer a disputa eleitoral devem ser coibidas, cabendo à Justiça Eleitoral intervir para o restabelecimento da igualdade e normalidade do pleito ou, ainda, para a correção de eventuais condutas que ofendam a legislação eleitoral”.
TSE, DR nº 0601433-15.2022.6.00.0000/DF. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. j. 24/10/2022.