‘Sabemos muito pouco sobre coisas essenciais para os municípios’

Félix Lopez coordena o Atlas do Estado Brasileiro, plataforma de dados do Ipea / Crédito: Helio Montferre/Ipea

O universo do funcionalismo nos 5.570 municípios brasileiros tem farto material para ser estudado, e a tradução desse esforço em políticas públicas tende a melhorar os serviços prestados à população. O pesquisador Félix Lopez, coordenador do Atlas do Estado Brasileiro, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), participa dessa jornada. Em entrevista ao JOTA, antecipada na newsletter Por Dentro da Máquina, Lopez pontua achados sobre a maior parcela do serviço público brasileiro e analisa os obstáculos para conhecer melhor a burocracia das cidades.

O senhor diz que falar de funcionalismo é falar da esfera municipal. Por quê?

A razão é muito simples: o funcionalismo do Brasil, que hoje tem por volta de 10 e 11 milhões vínculos de trabalho, está essencialmente e majoritariamente concentrado no município. De cada 10 pessoas que estão no setor público no Brasil, 6 estão nos municípios.

Frequentemente, a gente propõe formulações políticas, por exemplo, a reforma administrativa tal como a PEC 32, orientada por imagens, dados e perfis que são próprios do funcionalismo federal. Se a gente quer falar de funcionalismo do Brasil, é mais apropriado falar do funcionalismo municipal.

É sempre importante enfatizar que você tem no Poder Executivo de todos os níveis 95% de servidores do Brasil. O Executivo federal é só 5% do total de vínculos. Então é falar de municípios.

E existe um motivo para isso. As políticas públicas crescentemente foram sendo atribuídas aos municípios. E eles devem implementar a universalização da saúde, da educação… As políticas de assistência, as novas políticas ambientais, que agora estão aí no centro do debate público. Tem que dar conta e responder com forças de trabalho. Então esse é o aspecto fundamental.

E o que se conhece sobre esse universo?

Os municípios são diversos. A maioria dos municípios é pequena, muito pobre. Você tem faixas muito distintas. A gente tem que conhecer muito mais para também entender onde estão as maiores fragilidades e os maiores potenciais.

Do ponto de vista do perfil, você vai encontrar coisas muito diferentes.

Por exemplo, o perfil de ocupados e ocupações no funcionalismo está essencialmente relacionado ao estado de bem-estar: saúde, educação. Eles compõem quase 40% da força de trabalho. Pegando só professor e pegando enfermeiro e médico, se selecionar essas três ocupações, você tem 40%. Isso muda a forma como você compreende o funcionalismo.

Se você pegasse um batalhão de cientistas de dados e o conjunto de dados de qualidade que a gente tem sobre a administração pública, sobre a execução orçamentária, que no Brasil é reconhecidamente de qualidade, e fizesse análises quantitativas, conseguiria ver muitas sugestões de aprimoramento que poderiam ter um efeito em termos de eficiência.

A alocação mais apropriada do recurso público seria um divisor de águas. Mas para isso a gente precisa, por outro lado, de algum tipo de coordenação do topo.

Uma das coisas que o governo federal poderia fazer é coordenar essas ações. Porque os municípios, como a gente disse, são, boa parte deles, pobres. Têm burocracias menos qualificadas, com disponibilidade menor, remuneração certamente muito menor. Então, você precisa de uma coordenação de cima.

Se você olhar hoje, por exemplo, essa discussão sobre o orçamento, emendas parlamentares. O volume que isso ganhou começa a saltar aos olhos.

O Senado e a Câmara sempre souberam disso. Eles montam assessorias parlamentares para ajudarem prefeitos, por exemplo, para conseguir direcionar recursos para as suas bases municipais. Isso só indica como é precário. A gente tem que conhecer muito melhor.

“Se a instabilidade das burocracias que têm posições dirigentes no nível federal produz um verdadeiro massacre na capacidade de planejar políticas públicas, seria importante conhecer as implicações das rotatividades nos municípios”.

O que poderia ser melhor analisado?

Você pode identificar uma série de padrões. Recentemente, um estudo do pesquisador Guillermo Toral, da Universidade Vanderbilt (EUA), documentou com dados quantitativos que a saída e entrada de prefeitos gera, naturalmente, uma enxurrada de demissões e recontratações no início do mandato.

Ele demonstrou, o que também parece ser intuitivo, embora seja difícil de documentar empiricamente, que essas demissões e contratações na virada de mandato têm um efeito muito negativo sobre a qualidade das políticas. Ele documentou, por exemplo, que a capacidade de atendimento com o médico de família dos municípios cai drasticamente porque você desarma essas equipes.

Da mesma forma, a instabilidade das burocracias que têm posições dirigentes nos municípios. Se no nível federal isso produz um verdadeiro massacre na capacidade de planejar políticas públicas, seria importante conhecer as implicações das rotatividades nos municípios. No nível federal, o cargo de dirigente de nível 4, 5, 6 do antigo DAS fica, na mediana, 19 meses na função. É menos da metade do mandato presidencial. Ou seja, as pessoas entram e saem muito rápido. No município, ocorre a mesma coisa.

Quais são as implicações disso para as políticas públicas? A gente conhece muito pouco. Qual a relação disso com o sistema político partidário? A gente conhece muito pouco. Estamos falando de coisas essenciais para estruturar as políticas públicas no âmbito dos municípios.

Outro ponto a ser analisado e não compreendido ainda: os municípios estão vorazmente terceirizando a contratação no setor público para fugir da Lei de Responsabilidade Fiscal. Então eles estão pagando servidores por meio de terceirizações. E isso não liga na contabilidade. Sabe o que a gente conhece sobre isso? Nada. Não conhece absolutamente nada disso. Então, você tem um movimento assim oculto de mudança no perfil de terceirização do município.

“O Congresso está muito mais preocupado em conseguir atingir lá o seu município, executar a sua emenda no nível municipal do que pensar no conjunto dos municípios. Para isso, você tem que ter algum tipo de liderança do congresso que, no momento, não vejo”.

O Congresso hoje tem feito o papel de ajudar a dar racionalidade para o serviço público nos municípios?

Essa é uma resposta difícil. Há um aspecto, uma limitação, até certo ponto saudável, do federalismo. Os órgãos federais têm suas limitações de intervir nas decisões de estados e municípios. Isso não impede que você possa produzir politicamente um arranjo que tente ser mais pró-estados e municípios em termos de legislação para aumentar a eficiência ou para apoiar os municípios.

Não pode enfiar a goela abaixo. É uma coisa diferente de ter ou o Congresso Nacional ou o governo federal dizendo: ‘nós vamos apoiar estados e municípios a aprimorar as gestões públicas e para isso a gente vai fazer diagnóstico, a gente vai dar recursos, a gente vai montar grupos de trabalho e uma série de coisas que podem ser feitas’.

Mas isso requer um tipo de concertação que vai ser muito difícil de sair do Congresso. O Congresso está muito mais preocupado em conseguir atingir lá o seu município, executar a sua emenda no nível municipal do que pensar no conjunto dos municípios. Para isso você tem que ter algum tipo de liderança do congresso que, no momento, não vejo.

Melhorar a gestão das cidades também, de certa forma, reduz a margem para o clientelismo, não?

Você tem uma ampla heterogeneidade no nível municipal. Quem está no poder, não quer reverter. É um problema do cargo discricionário. Ninguém quer acabar com a discricionariedade da nomeação.

Por outro lado, há prefeitos que querem levar mudanças adiante, mas isso é uma não questão. A incapacidade é tamanha que você não consegue aprovar um projeto para conseguir recursos para a creche no seu município. Imagina fazer uma reforma administrativa no município. Então, você tem que ter algum tipo de apoio.

Há décadas, o Congresso Nacional dá aos prefeitos um apoio em base clientelistas. Conseguir recurso. Eu imagino que existe muita boa vontade, muito interesse em avançar na melhoria de gestão. Se você olhar, a adoção de concursos e o percentual de servidores recrutados no meio de concursos aumentou de forma expressiva nos municípios.

Agora, uma coisa é você recrutar por concurso. Outra é fazer com que o exercício da função seja de forma eficiente, a alocação seja eficiente. Eu acho que a gente tem que fazer um diagnóstico; tem que dar mais apoio; tem que olhar mais para o município; para os estados. Aí está o grande problema da gestão pública no Brasil.

Entre 1988 e 2000, houve uma grande expansão do número de municípios, com criação de burocracias para cada um deles. Como você avalia o resultado desse fenômeno?

Houve uma criação intensa de municípios, que se encerrou lá no início dos anos 2000. Isso, em parte, influenciou o crescimento do total de servidores no nível municipal. Essa é uma outra variável para explicar a expansão das burocracias.

Embora a gente não tenha dados precisos, isso frequentemente respondeu a critérios exclusivamente político partidário, quando se tinha duas famílias locais que brigavam, uma solução razoável era dividir o município, e aí todo mundo tem acesso às suas posições de poder. Isso, talvez, explique uma parte importante da criação de municípios e todas as burocracias. Não é à toa que a legislação começou a vetar isso.

A gente tem que compreender esses aspectos para tentar aumentar a racionalidade. Então, você vai ter a discussão sobre eficiência na alocação de servidores por áreas. Falar desse tipo de coisa não é dizer que os servidores são ineficientes. Você tem que produzir meios para fazer um diagnóstico seguro e produzir sugestões de aprimoramento, como é essa alocação mais eficiente, alterando o caráter das ocupações.

O setor público federal está investindo pesadamente em uma série de pesquisas sobre extinção de carreiras e o futuro do trabalho, para pensar nos próximos concursos. Os municípios precisam de apoio nesse sentido.

“Com essa desigualdade estrutural, você vai fechando o acesso ao poder de mulheres e negros no município. Um estudo recente mostrou isso. Tem desigualdade nas remunerações por ocupações. Em geral, você têm ocupações com menor remuneração tomadas por mulheres e por negros. Maiores remunerações, mais homens e brancos. São desigualdades presentes na sociedade e estão presentes no setor público”.

O que se pode dizer sobre equidade de gênero e raça nas burocracias municipais?

Se você olha a burocracia nos municípios, quanto maior o nível de poder nos cargos dirigentes, menor a presença de negros e menor a presença de mulheres. Você consegue estimar isso. É muito difícil você pegar os níveis hierárquicos dos cargos com municípios, mas você pega, com aproximações, os níveis de remuneração: quanto mais alto, maior o nível de poder.

Então, novamente, com essa desigualdade estrutural, você vai fechando o acesso ao poder de mulheres e negros no município. Um estudo recente mostrou isso. Tem desigualdade nas remunerações por ocupações. Em geral, você têm ocupações com menor remuneração tomadas por mulheres e por negros. Maiores remunerações, mais homens e brancos. São desigualdades presentes na sociedade e estão presentes no setor público.

Mais do que isso, olhando um prazo de três décadas, você não teve muita variação. Essa ideia de que a desigualdade está diminuindo, em particular no setor público, não sei se é uma ideia apropriada. Esse é outro aspecto que eu acho importante olhar.

O que a gente sabe sobre o nível educacional dos servidores em nível municipal, mesmo reconhecendo a grande heterogeneidade que deve existir país afora?

É um dado que, neste momento, está todo tabulado no Atlas, mas é inexplorado. A escolaridade do município é muito inferior ao nível médio de escolaridade no nível federal. Supostamente, a principal variável que explica isso são as diferenças nas remunerações. Não é só isso, mas o federal está lá no centro… Tem toda a visibilidade. A competição é maior porque os salários são maiores.

A escolaridade cresceu de forma significativa nas últimas décadas no funcionalismo em geral, mas de forma muito mais intensa no federal. No nível federal, têm carreiras e órgãos com nível de mestres e doutores que fazem inveja a qualquer país da Europa Ocidental.

No entanto, no nível municipal, você tem esse gap salarial. Na mediana, 50% dos servidores do município ganham R$ 2.500 ou menos, contando esses 6 milhões. Isso tem um rebatimento na escolaridade. A diferença é grande entre municípios. Certamente, municípios mais pobres e menores têm nível de escolaridade menor.

É difícil reverter esse quadro porque historicamente você consolidou o centro de poder também como o centro dos recursos. Mas isso mostra que existe um espaço grande para você tentar mitigar esse gap de escolaridade. Mitigar isso significa qualificar o serviço público nacional e as políticas nacionais.

Agora, o estudo empírico, eu fico se devendo. Por isso, a gente precisa ter pesquisa de dados. Aos poucos, a gente faz isso lá no IPEA, mas outros pesquisadores estão montando uma rede de pesquisas e gestão precisamente para tentar mobilizar esforços nesse sentido.

Há um amplo espaço para investir na trajetória da escolaridade dos servidores por ocupações, por níveis federativos. Outro ponto importante são as pesquisas por grupos de municípios. A gente ainda não compreende bem como as faixas diferentes faixas de população afetam as características de serviço público. Por exemplo, como afeta ter mais ou menos de 100 mil pessoas.

“Há uma heterogeneidade de transparência no nível municipal. A CGU parece que documenta. Vários pesquisadores tentam levantar dados de transparência municipal. Você tem que ter um movimento de forçar transparência ampla no nível municipal e estadual. Aí a inteligência artificial entra pegando esses dados e claramente vai começar a fazer muito do que a pesquisa não está fazendo hoje no Brasil”.

Em que medida a introdução dos mecanismos de inteligência artificial, combinada a uma gestão mais transparente, pode melhorar a efetividade do serviço público nos municípios?

Em larga medida. Eu vislumbro um cenário em que, com a transparência e a inteligência artificial, você vai começar a fazer recomendações. Esse é um cenário que o poder público no Brasil deveria se mobilizar.

Ainda é muito irregular. Há uma heterogeneidade de transparência no nível municipal. A CGU parece que documenta. Vários pesquisadores tentam levantar dados de transparência municipal. Você tem que ter um movimento de forçar transparência ampla no nível municipal e estadual. Aí a inteligência artificial entra pegando esses dados e claramente vai começar a fazer muito do que a pesquisa não está fazendo hoje no Brasil.

Para ser justo, você tem um desequilíbrio nas agendas que não estão focadas no nível municipal. Eu acho que o cenário é auspicioso, contando que você tenha uma parte que seja implementada, que é o avanço da transparência, mas eu acho que isso vai ser por força dos constrangimentos históricos

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